Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito – PLP n. 233/2023
Walter Polido (*)
Originado no Ministério da Fazenda, o PLP n. 233/2023, assinado pelo Ministro Fernando Haddad, tem toda a chance de passar tal como foi concebido, mesmo porque ficou enfatizado que as reservas do Fundo do seguro DPVAT não suprimirão os pagamentos do próximo exercício, sendo que o referido PLP já prevê a assunção dos recursos do novo seguro SPVAT para cobrir déficits (art. 17) do atual modelo.
As bases operacionais propostas se mostram condizentes com o atual sistema, mas nem por isso representa o melhor modelo em relação a um Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil de Automóveis, se comparado a outros países, inclusive da América Latina.
Não inova em nada e, na verdade, suprime coberturas, assim como as Despesas Médicas e Hospitalares (art. 2º), sendo que o SUS ficará 100% responsável pelo atendimento de vítimas de trânsito e a produção de prêmios do SPVAT “pode”, o que não significa “deve”, ser repassada em parte à Seguridade Social mediante Decreto Presidencial, com máximo de até 50% (art. 21). Não há nenhuma dúvida de que será repassada e no limite máximo. As coberturas previstas no PLP se limitam a Morte e Invalidez Permanente total ou parcial (art. 2º), desprezadas quaisquer outras, assim como as perdas financeiras decorrentes (extrapatrimoniais) e os novos danos/direitos: dano existencial ou prejuízo da afirmação pessoal, prejuízo ao projeto de vida, dano moral, dano estético, dano futuro ou para sequelas futuras, entre outras categorias de perdas e danos.
Na legislação do seguro obrigatório europeu, no tocante à responsabilidade civil de automóveis, todas essas categorias de danos são contempladas na garantia do seguro, em face das reais exposições dos riscos e a possibilidade de serem requeridas pelas vítimas e/ou seus beneficiários[1]. As limitações determinadas pela legislação e regulamentos brasileiros, no tocante às garantias de “danos corporais” e mesmo para os “danos materiais”, são antiquadas e desvirtuam o aspecto de proteção integral que o contrato de seguro deve ter como objetivo basilar.
Os usuários de veículos estão expostos à imputação de responsabilidade pelas perdas e danos causados a terceiras pessoas e sob os parâmetros do ordenamento jurídico ordinário, certamente não restritivo assim como se apresenta o regramento pertinente ao seguro. A finalidade do seguro obrigatório deve estar pautada na efetiva utilidade que ele representa para os segurados, sendo que no tocante ao risco da circulação de veículos, desborda para contemplar também os terceiros, numa dupla garantia: a de proteção patrimonial para os segurados e da garantia da indenização às vítimas.
Qualquer restrição ou limitação da cobertura imposta, tem a propriedade de quebrar esse aspecto garantidor, deixando todas as partes à mercê da capacidade patrimonial de cada uma delas, uma vez sobrevindo os sinistros. A régua normativa deve avançar, aumentando o grau de proteção, assim como já acontece em outros países, e não manter os mesmos padrões encontrados há décadas no Brasil, obsoletos e desconformes com a realidade social e jurídica.
O PLP mantém a Caixa Econômica Federal (CEF) como agente operador único (art. 7º) e retira qualquer possibilidade de as Seguradoras e os Corretores de Seguros participarem da operação, diferentemente da proposta contida no PL n. 8.338/2017 – Seguro Obrigatório de Acidentes de Trânsito – SOAT[2]. A CEF pode estabelecer convênios com as unidades federativas para a cobrança do prêmio do seguro SPVAT (art. 6º), quando então farão jus a até 1%, no máximo, do valor dos prêmios por elas arrecadados. Está previsto, também, o repasse de 10% do percentual destinado à Seguridade Social (que é de até 50% do total – art. 21), para a Coordenadoria do Sistema Nacional de Trânsito (art. 22), visando cobrir os custos com a promoção de campanhas de prevenção e segurança.
O direito das vítimas e/ou beneficiários à indenização, assim como no antigo regime do DPVAT, se mantém também em relação a veículos não identificados ou inadimplentes com o pagamento do prêmio do seguro (art. 3º,§ 1º), cuja previsão imprime uma natureza estatal ao seguro, incompatível com o regime privado das seguradoras, mesmo em se tratando de um seguro compulsório. É questionável, de qualquer forma, essa determinação, com viés paternalista do Estado, enquanto os infratores deixam de ser buscados e identificados para a devida imputação civil e até mesmo criminal, quando do abandono e/ou da não prestação de socorro às vítimas. A ausência ou a deficiência de fiscalização adequada e eficiente do Estado parece encontrar, neste tipo de norma, o seu paliativo.
As diferenças econômico-sociais encontradas no Brasil, cuja assimetria faz com que o país permaneça num estágio perene de subdesenvolvimento, acabam coibindo o avanço que seria necessário nessa questão do seguro obrigatório pela circulação de veículos ou servem de justificativa para o estágio primário. O modelo ideal seria um seguro de Responsabilidade Civil Veículos, com coberturas amplas, passando pela garantia dos danos pessoais e materiais, mais os extrapatrimoniais causados a terceiros, sob a égide da responsabilização de forma objetiva e integral, sem exceção. Paliativos como o DPVAT, o SOAT e agora o SPVAT sinalizam apenas, repise-se, o estágio de atraso no qual a sociedade brasileira ainda se encontra.
Referências
[1] Ver: GASPAR, Cátia Marisa. CHICHORRO, Maria Manuela Ramalho Sousa. A Valoração do Dano Corporal. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2018 / POLIDO, Walter A. O estágio atual da cobertura para danos pessoais (corporais) nos contratos de seguros de responsabilidade civil no Brasil. Novos danos e/ou novos direitos. São Paulo: Conhecer Seguros-Roncarati, 2020 (e-book gratuito, disponível nos sites www.conhecerseguros.com.br e www.editoraroncarati.com.br) Último acesso em 02.11.2023 / BRANDIMILLER, Primo Alfredo. Conceitos Médico-Legais para a Indenização do Dano Corporal. Responsabilidade Civil. Seguros de Acidentes do Trabalho. Seguros Privados de Pessoas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
[2] Ver: POLIDO, Walter A. SOAT – Seguro Obrigatório de Acidentes de Trânsito – PL n.º 8.338/2017 – é razoável a proposta legislativa na forma que ela se apresenta ou não? In: www.editoraroncarati.com.br e www.polidoconsultoria.com.br Último acesso em 03.11.2023.
(*) Walter Polido é consultor, árbitro em seguros e resseguro e sócio da Conhecer Seguros3
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