Por que a polêmica atual em torno do PLC 29/17? – Parte 1

Por Walter Polido*

 

O PLC 29/2017, um substitutivo entre os muitos que foram produzidos desde a primeira proposta legislativa apresentada através do PL 3.555/2004, tem despertado mais repulsa do que adesão atualmente. Aprovado na Câmara dos Deputados em 2017, seguiu para o Senado, onde permaneceu até este ano, sendo desarquivado recentemente.

A resposta pronta à provocação feita no título deste texto não pode ser outra: porque ele envelheceu rapidamente, de 2017 para cá. Na hipótese remota de ele ser aprovado, mantendo exatamente o texto original, produzirá desconformidades tamanhas, muitas delas de difícil solução prática, podendo até mesmo gerar a judicialização de algumas delas.

Mas, por que ocorre essa situação, sendo que de 2017 a 2023 não transcorreu tanto tempo assim? Para responder objetivamente, é necessário voltar no tempo, precisamente no cenário de mercado fechado, o qual perdurou por 68 anos, ou seja, de 1939 a 2007, em face do monopólio do resseguro que vigeu no País.

Nesse longo período, o mercado de seguros teve a atividade seguradora fortemente controlada pelo ressegurador estatal e único, o qual desempenhava inúmeras tarefas atípicas a um ressegurador, especialmente a regulação de sinistros com pessoal próprio e a determinação não só das condições contratuais do resseguro e da retrocessão, como também, e com maior impacto, as condições contratuais e tarifárias dos contratos de seguros.

Esse modelo, responsável pela formação da atividade seguradora nacional, ao perdurar por tanto tempo, criou disfunções, até hoje percebidas no dia a dia do mercado (baixa retenção das seguradoras por risco; segmentação exagerada de coberturas por ramos e com a exigência de contratação de diferentes apólices pelos segurados; desconformidade técnica na subscrição, prevalecendo aspectos puramente comerciais; condições contratuais obsoletas em face dos interesses reais dos consumidores; outras).

Com o advento da Lei Complementar n.º 126/2007, ocorreu a desmonopolização do resseguro no Brasil, verdadeiramente um marco regulatório significativo para a atividade, sendo que as seguradoras retomaram atribuições que sempre foram originalmente delas, mas que o ressegurador monopolista controlava. Antes desse fato emblemático, tinha ocorrido a liberação das tarifas de seguros no mercado, antes oficiais e únicas por ramo – inclusive a taxa de comissionamento da corretagem, por força da Circular Susep 22/1987 (superintendente da Susep: João Regis Ricardo dos Santos).

Esse movimento, extremamente emblemático no mercado nacional, só não foi completo pelo fato de que, após a abertura do resseguro, a Susep retomou para ela a prerrogativa de determinar modelos de condições contratuais de seguros para os ramos, os chamados “produtos padronizados” e, quando aparentemente admitia a elaboração dos “não-padronizados”, o processo era conduzido de tal forma, que jamais houve liberdade de atuação e o mercado segurador nacional sempre ofereceu modelos de coberturas antiquados, não abrangentes, desarticulados da realidade de outros países, notadamente de mercados maduros. Os consumidores sempre perderam neste cenário.

No final de 2020, a Susep, num rasgo de modernidade, completou a abertura que tinha sido iniciada em 1987, ao determinar a liberdade de atuação das seguradoras na elaboração das condições contratuais dos diferentes ramos de seguros, especialmente na categoria dos chamados “grandes riscos” (superintendente da Susep: Solange Paiva Vieira).

O mercado brasileiro, finalmente, entrou no século XXI, antes atrelado ao pensamento contratual e de controle estatal excessivo da atividade, voltado a tempos ainda mais remotos. Os atos normativos, representados principalmente pela Circular Susep 621/2021 (seguros de danos – massificados), Resolução CNSP 407/2021 (danos – grandes riscos), Circular Susep 639/2021 (automóvel), Circular Susep 637/2021 (responsabilidades), Circular Susep 662/2022 (garantia), Circular Susep 640/2021 (agro), Circular Susep 667/2022 (seguros de pessoas; esta Circular na gestão do superintendente Alexandre Milanese Camillo), foram os promotores da mudança, extinguindo o modelo intervencionista estatal de quase um século e guindando o mercado de seguros nacional para a modernidade, cujo padrão é encontrado nos países líderes, assim como em outros também na América Latina, como Chile e Colômbia.

Essa liberdade de atuação, ainda não exercitada integralmente pelas seguradoras no Brasil, em face do tanto de novidades que representa e da especialização requerida para a promoção das tarefas de atualização, não pode ser perdida, de forma alguma. O PLC 29/17, por sua vez, desconsiderou todo esse processo de inovação ocorrido, até porque o texto foi concebido dentro do cenário de controle que existia, e propugna por uma volta ao passado, no tocante à liberdade de elaboração dos ditos “clausulados”, sequer diferenciando-os entre seguros de massa e grandes riscos. Só por essa razão, apesar de existirem muitas outras, o texto atual do PLC 29/17 não pode ser aprovado no Senado, sem modificações.

Ao sofrer alterações no Senado, aguardadas pelas mentes progressistas deste mercado, no tocante aos pontos que requerem atualização, o PLC regressará à Câmara, sendo que também naquela casa legislativa deverá ser acolhida a nova versão substitutiva. Seria, portanto, completamente disfuncional a aprovação do texto no estado atual que se encontra no Senado. Este é, sem dúvida, um dos pontos cruciais nessa discussão do PLC 29/17.

O disposto no art. 7º do PLC 29/17, ao determinar o registro e a aprovação prévia da Susep para todas as condições contratuais de seguros, quebra a liberdade prevista na Resolução CNSP – 407/2021, retroagindo para o período anterior, no qual prevaleceu, desde o monopólio do resseguro, o determinismo conducente do Estado. Este procedimento deixou o mercado de seguros nacional defasado em termos de produtos de seguros, com condições e estruturas de coberturas antiquadas, prejudicando os segurados.

O conceito mais comezinho de “subscrição” determina a estipulação dos “termos e condições” de cada proposta de seguro, de acordo com as especificidades de cada risco. Simplesmente enquadrar propostas de seguros em clausulados padronizados pré-registrados, não condiz com a subscrição técnica devida e necessária, cujo procedimento, repise-se, deixou o país fora da realidade mundial, especialmente em relação ao padrão técnico dos países desenvolvidos, com mercados de seguros maduros.

O Brasil precisa alcançar esse estágio de desenvolvimento, inquestionavelmente, em curto espaço de tempo. Na Europa, para exemplificar, as normas comunitárias preveem a obrigação de os intermediários de seguros customizarem os diferentes produtos para cada proponente-segurado, saindo do padrão generalizante (Diretiva 2002/92/CE; Diretiva 2016/97/CE).

Miguel Santos faz a seguinte preleção a respeito: “o aconselhamento com base numa análise imparcial e pessoal implica a análise de um número suficientemente elevado de contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita fazer uma recomendação de acordo com critérios profissionais, quanto ao contrato de seguro mais adequado às necessidades do cliente.”

A multiplicidade de condições contratuais (Condições Especiais + Condições Particulares em acréscimo às Condições Gerais), conforme o procedimento usual no Brasil em face da padronização que sempre prevaleceu desde o longo período do monopólio de resseguro, resulta em contratos de seguros complexos, nada objetivos, extremamente complicados para os não iniciados em seguros, confusos e disfuncionais, cujo modelo é, sem dúvida, o principal gatilho motivador da judicialização do seguro no País.

A tão aguardada liberdade de estipulação das condições contratuais, especialmente para os grandes riscos – ainda em fase de maturação no mercado nacional, desde a abertura promovida pelo Órgão Regulador, não pode sofrer nenhum tipo de revés e, só por esse motivo, já justifica o rechaço da atual redação do PLC 29/17. O mercado de seguros brasileiro precisa, necessariamente, avançar e não regredir.

Nessa discussão, até mesmo a determinação do registro prévio, na verdade o depósito das condições contratuais na Susep, para os seguros de massa, conforme a previsão contida nas Circulares Susep 621/21 (seguros de danos) e 667/2022 (seguros de pessoas), apesar de o depósito indicar que o Órgão Regulador não mais analisará cada produto para aprová-lo, mesmo assim o procedimento desvirtua o conceito básico de subscrição, na medida em que pressupõe o enquadramento de propostas em textos predeterminados e, não sendo possível, a seguradora inserirá “inúmeras cláusulas adicionais”, tornando o contrato, repise-se, complexo desnecessariamente e só em função do rito administrativo do “registro prévio”.

Essa exigência, efetivamente, apresenta maior grau de possibilidade de o consumidor-segurado ser prejudicado, do que ser protegido pelo Estado. Ora, ao Estado a obrigação de preservar a higidez financeira do sistema segurador, através da regulamentação e da fiscalização efetivas das provisões técnicas e das reservas de sinistros, sendo que não lhe cabe conduzir a elaboração dos produtos de seguros, criados pelas seguradoras privadas.

Outros dispositivos podem ser igualmente impactantes, e de maneira disfuncional, na hipótese de serem aprovados, sem alterações. Neste texto inaugural sobre o tema, serão destacados alguns deles, sem qualquer ordem de importância ou mesmo em relação à numeração dos artigos, iniciando pelo resseguro.

No tocante ao “resseguro”, não faz o menor sentido o PLC 29/17, no Capítulo XI, prever dispositivos a respeito e com pretensões de regular em parte a operação, ainda que não adentre em todos os aspectos contratuais. Aliás, se houvesse essa pretensão de forma significativa, ela seria totalmente imprópria, podendo colocar o Brasil numa situação de isolamento mundial, apesar da internacionalidade ínsita no resseguro. Além do disposto no Capítulo XI, outros artigos foram incluídos no referido instrumento legislativo e com implicação no resseguro, sendo que não merecem ser acolhidos e sim suprimidos no processo de análise a ser realizado no Senado.

O disposto no art. 78, para exemplificar, embora não mencione o termo resseguro, foi direcionado a ele, propositadamente e com o escopo de impedir que o ressegurador coopere no processo de regulação de sinistros com as seguradoras parceiras. Ora, a cooperação do ressegurador constitui um procedimento universalmente aceito e com resultados satisfatórios para todas as partes envolvidas, especialmente os segurados.

Dada à internacionalidade das operações de resseguro, a expertise que os resseguradores profissionais adquirem devido ao envolvimento deles com diferentes mercados mundiais, propicia conhecimento de alto valor, também na regulação dos sinistros mais complexos. Uma determinada ocorrência, um fato gerador de danos severos ocorrido no Brasil, pode ser único ou inédito para o mercado local, mas não necessariamente para os resseguradores internacionais e, esse conhecimento, não pode ser ignorado, tampouco impedido de ser compartilhado no País.

A possibilidade de o ressegurador controlar a regulação do sinistro, por sua vez, cujo procedimento é sempre excepcional e não a regra comum, também não pode ser afastado por lei, uma vez que ele pode ser requerido, inclusive, por iniciativa da própria cedente, notadamente quando ela lançar um novo segmento de seguros no mercado, para o qual ela não detém nenhum conhecimento técnico e operacional, contando com a participação efetiva do ressegurador não só em termos da oferta de capacidade de resseguro, como também e principalmente com a expertise técnica dele, incluindo conhecimentos sobre regulação de sinistros.

Essa praxe internacional não pode ser descartada no Brasil, sob qualquer argumento, muito menos por retórica ideológica desconexa da realidade internacional. Resseguro é uma atividade comercial estabelecida entre empresas profissionais – Seguradora/Resseguradora, paritárias e não hipossuficientes, conhecedoras do objeto do negócio, cuja manifestação livre da vontade é a marca mundialmente aceita e de conformidade com os padrões exigíveis.

O contrato de resseguro é atípico e as partes estabelecem os termos e condições que prevalecerão entre elas. O mercado nacional de seguros e o Brasil não podem ficar fora dessa realidade.

Nota: No dia 24 de agosto de 2023 foi constituída a Comissão de Juristas, no Senado Federal, para analisar e propor o anteprojeto para a Reforma da Lei n.º 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro), sendo que o Contrato de Seguro, Capítulo XV, poderá ser incluído na Comissão, sustando a tramitação do PLC 29/17.

 

* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros, advogado, consultor, parecerista, professor, árbitro em seguros e resseguros, e autor de livros.

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