Por Walter Polido*
A iniciativa da Susep referente a Consulta Pública expondo as alterações concernentes aos seguros de RC Geral, E&O, D&O e Ambiental, em princípio sequer teria necessidade de acontecer, uma vez que a Circular Susep nº 621/2021 e a Resolução CNSP nº 407/2021, ambas relacionadas aos seguros de danos de maneira ampla, já abrangem as referidas categorias ou segmentos de seguros.
De todo modo, a Superintendência resolveu especificar, mesmo porque os mencionados atos normativos não revogaram os instrumentos que atualmente regem os referidos ramos de seguros. Diante da iminência de a Circular Susep nº 437/2012 (RCG) ser definitivamente derrogada e substituída por normas simplesmente orientadoras e sem qualquer vestígio de padronização das bases contratuais do ramo, por si só já se sobressai significativamente o marco regulatório em curso. A mencionada Circular, a ser revogada nos próximos dias, marca um período de retrocesso técnico-jurídico nunca antes experimentado pelo ramo, devendo ser esquecida para sempre.
Desde a criação da Divisão dos Seguros de Responsabilidade Civil Geral no IRB em 1960, o ressegurador monopolista tomou para ele a missão de desenvolver a carteira e desempenhou este papel até a edição da Lei Complementar n.º 126/2007. Os clausulados que eram elaborados pelo IRB “para fins de resseguro” evoluíram e, apesar de alguns modelos e estruturas se tornarem desajustados ao longo dos anos, mesmo assim eles eram superiores tecnicamente em relação aos modelos estruturados pela Circular Susep nº 437/2012.
Em boa hora este modelo estatizado deixa de existir e a flexibilização promovida pelo Órgão Regulador motiva o surgimento de novas estruturas, verdadeiramente abre a possibilidade de o mercado de seguros resgatar o tempo perdido. O ramo RCG teve expressivo desenvolvimento no País em razão da demanda aumentada e por vários motivos: horizontalização da exigência de contratação do seguro entre prestadores de serviços e fornecedores de modo geral; incremento da judicialização; legislação apertada; entre outros.
Nessa mesma linha de necessidades, despontam os Seguros de Riscos Profissionais (E&O), embora esta categoria tenha sofrido pouca ou nenhuma interferência da Susep, mormente no que se refere à padronização das bases contratuais, restando as exigências contidas na “Lista de Verificação”, que certamente também conduziam à padronização, sob vários aspectos de forma anacrônica e pouco técnica.
O D&O, com regulamentação mais recente, amargou estruturação também questionável sob vários aspectos, inclusive conceitual, sendo que a Circular Susep nº 541, de 14/10/2016, substituída em seguida pela 553, de 23/05/2017, era simplesmente impraticável e a segunda tolerável, ao menos sob a esperança de ser sumariamente revogada, assim como ocorrerá nos próximos dias.
O segmento de Riscos Ambientais foi e nem poderia ter sido diferente, aquele que sofreu o menor grau de interferência da Susep em relação aos produtos que ele contém, apesar de também eles terem passado pelo crivo da “Lista de Verificação”, estruturante na sua essência, a qual nunca apresentou uma concepção técnica de primeira ordem.
Este cipoal regulatório, em vias de ser extinto para sempre no mercado, continha determinações impróprias e impossibilitou o desenvolvimento pleno das bases contratuais dos referidos segmentos de seguros. Prejudicou, em razão disso e primordialmente, os segurados-consumidores que ficaram apartados da possibilidade de contratar produtos de seguros com concepções técnico-jurídicas adequadas e modernas. Tudo isso, para o bem de todos, já é passado e o futuro promete o acesso a soluções aprimoradas, as quais já estão disponíveis em outros mercados de seguros, especialmente em razão de que aquelas mesmas seguradoras estrangeiras que operam no Brasil, já comercializam bases contratuais de primeira linha lá fora. Bastará internalizá-las rapidamente.
Com esta perspectiva, em relação à Consulta Pública n.º 06/2021, apresentamos sugestões de alterações e de modo mesmo a contribuir para o aperfeiçoamento da norma, em prol de todos os agentes envolvidos nas operações dos seguros, mas especialmente dos segurados-consumidores. Anexo, o Quadro-Resumo contendo as sugestões apresentadas à Susep.
Uma vez editada a nova norma, revogando todos os atos normativos que regem os referidos segmentos de seguros, podem ser esperadas soluções relativas a situações que ainda hoje são motivadoras do atraso tecnológico que o mercado de seguros brasileiro apresenta em relação às bases contratuais. Algumas delas podem ser destacadas:
1. Possibilidade de ser abandonada a estrutura anacrônica de Condições Gerais + Condições Especiais + Condições Particulares, que prevalecia como forma básica para todos os ramos de seguros e exigida pela Susep.
Nem sempre esta estrutura pode ser indicada como o melhor modelo, notadamente em seguros de RC, grande parte deles melhor conduzido sob a estrutura única de condições contratuais e para grandes segmentos: RC Industrial; RC Comercial; RC Privada; RC Eventos; RC Obras Civis etc.
Cada segmento deve apresentar as suas condições contratuais únicas, sem a multiplicação de cláusulas especiais e/ou particulares. Os produtos devem ser abrangentes e de modo a atenderem de fato os interesses seguráveis.
As Seguradoras devem disponibilizar diferentes modelos de clausulados, podendo estabelecer vários níveis de coberturas e sem a multiplicação de cláusulas particularizadas, as quais sempre dificultam a exata compreensão do conteúdo dos contratos de seguros. A exigência de um produto único por ramo deixa de existir por parte da Susep;
2. Comercialização de apólices “all risks”, sendo que os segmentos de RC, mundialmente, adotam este modelo com primazia.
O modelo de “riscos nomeados”, determinado pela Circular Susep-437/2012, é obsoleto e, ao invés de garantir os segurados, na verdade restringe o alcance das coberturas, mesmo porque os riscos são taxativamente determinados nominalmente. Neste modelo, aquelas situações de sinistros que não se enquadrarem exatamente na descrição apresentada pela apólice, não haverá cobertura pelo seguro.
Observando as Condições Especiais de RC Empregador determinadas pela Circular Susep 437/2012, pode ser percebida a gravidade dessa afirmação: a referida Circular “transformou” o seguro de RC num seguro de Acidentes Pessoais e como se de fato os riscos seguráveis tivessem a mesma natureza técnico-jurídica;
3. Indicação de diversos LMI’s/LA’s numa mesma apólice, por modalidade.
Ora, essa estrutura basicamente inexiste em mercados maduros, mesmo porque não há a multiplicação de condições especiais e condições particulares, cada qual determinando “modalidades” diferenciadas na apólice.
Este modelo é obsoleto e equivocado, além de criar “gaps” de coberturas entre uma condição e outra, prejudicando os segurados. Nas apólices CGL (Commercial General Liability), cujo modelo é mundialmente utilizado e porque é eficaz, são encontrados dois LMI’s/LA’s. Um por ocorrência/sinistro para RC Operações, outro para RC Produtos-Operações Completadas.
Além disso, na seção RC Operações da apólice, uma infinidade do que atualmente o mercado brasileiro trata por diferentes modalidades com respectivas Condições Especiais de coberturas, fazem parte constante do clausulado único. Do mesmo modo, inúmeras condições particulares e representadas por cláusulas específicas, poderão deixar de existir, sendo que os riscos pertinentes poderão fazer parte da cobertura da apólice, de forma automática;
4. No segmento de riscos industriais, o mercado de seguros deverá adotar o conceito de RC Produtos-Operações Completadas, assim como ele já é aplicado internacionalmente.
No Brasil, em razão da separação de modalidades, cujo procedimento vigorou até a edição das novas normativas da Susep, para ser obtido nível equivalente de garantia era necessário contratar três modalidades: RC Produtos + RC Todas as Obras + RC Prestação de Serviços em Locais de Terceiros.
Mesmo assim, esta última modalidade apresentava conceito desconforme, na medida em que as condições especiais garantiam apenas os danos ocasionados “durante” a prestação dos serviços, desvirtuando o conceito de “operações completadas”;
5. Os clausulados a serem ofertados pelas Seguradoras devem ser estruturados com “triggers” (gatilhos) diferentes, conforme as exigências de cada segmento.
Assim como é praticado internacionalmente: apólices à base de ocorrências; de reclamações (claims made); de reclamações com notificações, da primeira manifestação/descoberta do sinistro. Os clausulados devem ser estruturados para cada modelo de gatilho.
A mescla desses modelos numa mesma apólice, cujo procedimento não é usual nos mercados internacionais, pode redundar em possíveis conflitos, se não for bem administrada pelos corretores de seguros e seguradoras, especialmente quando da não renovação da apólice na mesma seguradora. O ideal é que a apólice contenha um determinado “trigger” aplicável a todas as coberturas constantes do contrato de seguro;
6. A nomenclatura deve ser revisitada e de modo a contemplar a evolução que os termos sofreram, também em razão do Direito e da jurisprudência.
O termo “danos corporais”, por exemplo, pode não representar perfeita garantia aos segurados na atualidade, sendo que a sua substituição por “danos pessoais” constitui procedimento esperado do mercado de seguros.
A mudança do termo, traduz evolução, na medida em que ele abrange automaticamente os danos da personalidade e/ou os danos extrapatrimoniais representados por danos morais, danos estéticos, danos existenciais, prejuízo ao projeto de vida da vítima, entre outros.
Nesta senda, é inadmissível, neste momento de evolução e de completa transformação das bases contratuais no Brasil, que o mercado continue a segregar o risco de “danos morais”, excluindo-o taxativamente e admitindo a garantia sob condição adicional, com cláusula particular e sublimite.
Há Seguradoras que operam da mesma forma em relação aos “danos estéticos”, sendo que algumas delas sequer oferecem a garantia de forma adicional. É o momento propício para esses critérios anômalos serem revistos e abolidos e como ponto de observação especial por parte dos corretores de seguros, quando selecionarem as Seguradoras para as quais eles enviarão as propostas de seguros. O seguro deve ser útil para quem o contrata;
7. As bases que são utilizadas para a composição do quantum indenizatório, mormente dos danos pessoais, devem ser revisitadas também.
Não é concebível que o salário da vítima continue sendo o fator primordial para o cálculo da indenização e como se o cidadão fosse apenas um ser laboral na sociedade e na sua vida privada. O seguro tem forte função social e, repise-se, deve ser efetivamente útil para quem o contrata e para as vítimas dos danos na sociedade de risco contemporânea;
8. As apólices devem incentivar a indicação de meios adequados para a solução de conflitos, sendo que o judicial pode se situar apenas entre eles e não necessariamente o mais importante.
Mediação e arbitragem podem ser muito mais eficazes e mais céleres na solução dos conflitos, além de poderem contar com árbitros especializados nos temas. Em determinados segmentos especiais não há dúvida de que eventuais conflitos que possam ocorrer entre a Seguradora e os Segurados certamente poderão ser resolvidos com maior grau de certeza e celeridade, se eles forem submetidos à mediação ou arbitragem: riscos ambientais; D&O; riscos profissionais das diversas categorias – E&O; RC Produtos; outros;
9. O anacrônico e injustificável modelo de apólice RC à base de “reembolso” deverá ser de vez abandonado.
O termo “reembolso”, quando aparece nas bases contratuais estrangeiras, ele diz respeito apenas àquelas determinadas despesas pontuais que o Segurado eventualmente já saldou por conta do sinistro ocorrido ou da expectativa do sinistro e que serão também reembolsadas pela Seguradora (despesas de contenção de sinistros, empreendidas em caráter de emergência, por exemplo).
Jamais será encontrado o princípio de reembolso para a indenização em apólices estrangeiras; o critério é utilizado apenas no mercado brasileiro. O modelo de indenização direta ao terceiro, conforme tipifica o Código Civil, art. 788, só se aplica a seguros de RC de natureza obrigatória e pode permanecer desta forma, apesar de a tendência jurisprudencial admitir que o seguro de RC apresenta duas garantias: proteção patrimonial do segurado diante da obrigação de indenizar o terceiro prejudicado e a garantia de reparação ao terceiro, vítima do segurado.
Nos países desenvolvidos e com mercados de seguros igualmente maduros, prevalece o modelo de apólice de “indenização ao segurado” nos seguros de RC de forma ampla.
Também sob a classificação dos Seguros de Danos, os de RC não poderiam ser diferentes no tratamento e, o princípio da indenização ao segurado preserva a “indenidade” deste, ou seja, o segurado tem a garantia absoluta de que o seu patrimônio não será desfalcado em sobrevindo sinistros, diferentemente do que ocorre com o modelo de reembolso.
A apólice de indenização ao segurado, portanto, é utilizada por todos os países, conforme os modelos internacionais a seguir reproduzidos:
“Inglaterra – Lloyd’s – Nós, Subscritores Membros dos sindicatos, cujas proporções e números definitivos estão indicados na Tabela anexa (doravante chamados de ‘Subscritores’) comprometemo-nos por meio deste instrumento a indenizar o Segurado na extensão e na forma previstas nesta Apólice, em contrapartida ao pagamento, efetuado a nosso favor pelo ou em nome do Segurado, do prêmio indicado nas Especificações”.
“Espanha – PERM – Pool de Riscos Ambientais: 1.1. OBJETO DEL SEGURO. De acuerdo con las Condiciones de la póliza, dentro siempre de los límites establecidos en las mismas, el Asegurador cubre al Asegurado la Responsabilidad Civil, por haber causado o poder causar a terceros un daño indemnizable a consecuencia de una Contaminación Asegurada”.
“Argentina – RCP – Médicos – 1.2.1. Indemnizaciones – La Compañía se compromete a mantener indemne al Asegurado, por encima de la franquicia, dentro de los Límites de Indemnización consignados en el Anexo de condiciones particulares y bajo las condiciones, con el alcance y forma estipulados en la presente póliza, contra todas las sumas que el Asegurado tenga la responsabilidad legal de pagar, que deriven de un reclamo o reclamos por cualquier lesión, enfermedad o fallecimiento de un paciente, causados o que se alegue han sido causados, por cualquier acto de mala praxis: cuando tal acto de mala praxis se impute al Asegurado en su carácter de prestador de servicios o tratamientos médicos, odontológicos o auxiliares de la medicina, y/o como empleador o contratante de médicos, odontólogos y/o auxiliares de la medicina”.
“EUA – Apólice CGL do ISO (Insurance Service Office – entidade “privada” que presta serviços ao mercado americano, inclusive elaboração de clausulados) – COBERTURA – A: RESPONSABILIDADE POR DANOS CORPORAIS E DANOS PATRIMONIAIS – 1. Contrato de Seguro. a. Nossa Companhia pagará as importâncias que o segurado se tornar legalmente obrigado a pagar a título de indenização por “lesão corporal” ou “dano patrimonial” ao qual o presente seguro se aplica. Nossa Companhia terá o direito e a obrigação de defender o segurado em qualquer “processo” de ressarcimento de tais danos. No entanto, nossa Companhia não terá a obrigação de defender o segurado em nenhum “processo” tendo em vista a obtenção de indenização por “lesão corporal” ou “dano patrimonial” ao qual o presente seguro não se aplica. Nossa Companhia pode, a nosso critério, investigar qualquer “ocorrência” e liquidar qualquer reclamação ou “processo” resultante. No entanto: …”.
“Alemanha – COBERTURA A. RESPONSABILIDADE POR DANOS CORPORAIS E DANOS MATERIAIS – 1. Acordo de Seguro – a. Nós pagaremos aquelas somas pelas quais o segurado se tornar legalmente obrigado a pagar como compensação de danos por “danos corporais” ou “danos materiais” aos quais este seguro se aplica. Nenhuma outra obrigação ou responsabilidade para pagar somas ou para desempenhar ações ou serviços estão cobertas, a menos que expressamente…”.
O processo de flexibilização das bases contratuais em curso pela Susep constitui, repise-se, movimento inovador e nunca antes experimentado pelo mercado de seguros brasileiro. Há, neste marco regulatório, a chance de o Brasil se igualar na oferta de produtos de excelência ao público consumidor, assim como são encontrados em outros países.
O movimento para a consecução deste objetivo passa, necessariamente, pela especialização de conhecimentos dos profissionais que se incumbirão das tarefas modernizadoras. No curto e médio prazo, deverão se preparar, despindo-se de velhos paradigmas que não mais poderão ser aproveitados nos trabalhos de reformulação que certamente atingirão toda a operação e não só das bases contratuais.
Ao alterarem os produtos, também as bases de subscrição sofrerão impactos, assim como os outros setores da companhia: publicidade, comercial, regulação de sinistros, jurídico, estatísticas, contabilidade, resseguro.
Os corretores de seguros, por sua vez, deverão se preparar para o novo cenário, na medida em que o grande desafio para eles será o de conhecer todos os produtos, estabelecendo comparativos técnicos e de coberturas, muito além do elemento único representado pelo preço do seguro, de modo a ofertarem o melhor produto ao cliente.
Além disso, cabe também aos corretores de seguros, analisar os interesses e os riscos de cada cliente, de modo a buscarem a melhor garantia disponível ou, se ela inexistir da forma calculada, ela deverá ser construída “tailor made”, sendo que a partir desse processo de flexibilização das bases contratuais, este objetivo pode e deve ser plenamente alcançado, cotidianamente.
A técnica subjacente aos contratos de seguros passa a ser valorizada efetivamente, sendo que jamais poderia ter deixado de ser. Um novo tempo para um novo mercado de seguros brasileiro.
* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, advogado, técnico-especialista em seguros e resseguros, consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros, também é árbitro em seguros e resseguros, parecerista, professor universitário e escritor.
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