A utilização de modelos de Inteligência Artificial para identificação de precedentes qualificados no processo civil brasileiro e o uso de decisões vinculantes em contratos de seguro

Por Felipe Dutra de Freitas e Jaqueline Wichineski dos Santos*

Os precedentes qualificados revelam-se como decisões voltadas à estabilização de uma tese jurídica, sendo capazes de vincular o entendimento dos Tribunais de Justiça a respeito de determinada matéria com o objetivo de oportunizar a sua aplicação a todos os processos judiciais, tanto aqueles que se encontram pendentes de tramitação, como também as ações que vierem a ser ajuizadas, cujos objetos versem sobre o mesmo tema.

O Código de Processo Civil, em seu art. 927, conferiu um papel destacado aos precedentes qualificados em todo o sistema processual brasileiro, atribuindo-lhes eficácia vinculativa. Isso significa que, no âmbito da sua estrutura de funcionamento, tais decisões vinculam as posições das instâncias inferiores. A opção do legislador em prestigiar esse instituto se deve ao fato de que o seu uso correto possibilita maior segurança jurídica a partir da uniformização da jurisprudência, reduzindo os malefícios causados pela prolação de decisões em sentidos opostos proferidas no âmbito de processos idênticos.

Ademais, por trabalhar sob a lógica da não surpresa, visualiza-se no sistema de precedentes judiciais um potencial contributivo para a própria pacificação social, pois se desestimula a propositura desenfreada de ações aventureiras, combatendo a litigância frívola e predatória. Nesse âmbito, justifica-se a realização de investigação, sob a metodologia de pesquisa dedutiva, a respeito do emprego de modelos de Inteligência Artificial como ferramentas para ampliar a segurança jurídica ao sistema de precedentes judiciais, haja vista a sua pretensa capacidade de promover uma seleção mais qualificada de paradigmas, conferindo maior eficiência e efetividade no processo civil pátrio.

O sistema de precedentes judiciais no âmbito do processo civil brasileiro como fator de segurança jurídica

No contexto jurídico ocidental, há dois sistemas amplamente difundidos, denominados como civil law e common law. O civil law é influenciado pela tradição romano-germânica, enquanto o common law é característico do desenvolvimento jurídico na Inglaterra. Historicamente, o modelo do civil law, no qual se inclui o sistema jurídico brasileiro, é fundamentado no primado da legislação como fonte do direito, sendo esta emanada do Poder Legislativo, que possui a competência para criar leis.

Nesse sistema, originalmente, o juiz adotava uma postura passiva e restrita em relação à legislação, não podendo suavizar sua aplicação ou intensidade, o que resultava na ideia de soberania do texto legal. O papel do juiz estava vinculado a dar forma concreta, transformando em instrução prática o mandato abstrato estabelecido pelo legislador para uma ampla gama de situações, incluindo o caso levado ao seu conhecimento.

Assim, nessa tradição, os Tribunais de Justiça eram principalmente responsáveis por garantir que o magistrado seguisse estritamente o conjunto de leis, protegendo a coerência do Direito ao longo do tempo e em diferentes situações. Não é surpreendente notar, todavia, que com o passar das décadas, houve crescente convergência entre os sistemas civil law e common law. Esse fenômeno resultou na decodificação do civil law e na crescente importância, nesse sistema, do direito jurisprudencial, enquanto na common law o direito legislado passou a ganhar destaque.

Além disso, a concretização dos direitos fundamentais estabelecidos nas Constituições passou a exigir uma legislação com termos abertos, utilizando-se de conceitos jurídicos amplos para evitar limitações indevidas, o que demandou a transformação do papel do juiz para uma postura ativa na aplicação dessas promessas constitucionais.

A ideia dos precedentes insere-se justamente neste ponto, revelando íntima ligação com o crescente protagonismo dos juízes e da jurisprudência sob o viés da igualdade de tratamento, culminando, por fim, na segurança jurídica do próprio sistema normativo.

A compreensão de que a norma é o resultado da interpretação (ou seja, o reconhecimento de que o texto legal, por si só, não é suficiente para orientar o comportamento humano em razão de sua dupla indeterminação – textos podem ser ambíguos e normas podem ser vagas) levou à consideração da decisão judicial não apenas como um meio de resolver um caso específico, mas também como um instrumento para promover a unidade do Direito.

Concluiu-se que, em certas situações, as justificativas adotadas nas decisões podem funcionar como elementos capazes de reduzir a indeterminação do discurso jurídico, podendo ser vistas como concretizações reconstrutivas de mandamentos normativos. Esse entendimento despertou a atenção da doutrina e do Código de Processo Civil de 2015 para a questão dos precedentes judiciais.

Se as normas só existem através da interpretação, de modo que o respeito ao princípio da legalidade implica respeitar a interpretação dada à lei pelos órgãos responsáveis, por isso então qualquer pessoa interessada em saber qual é o seu espaço de liberdade de ação e quais são os efeitos jurídicos ligados às suas escolhas socioeconômicas não pode ignorar o problema da interpretação do Direito e dos precedentes decorrentes dela.

Sem isso, a normatividade corre o risco de ser um conjunto irracional, que não respeita a liberdade, a igualdade e a necessidade de segurança nas relações jurídicas. É por isso que o artigo 926 do CPC menciona que a segurança jurídica depende da interpretação que os Tribunais de Justiça conferem ao Direito.

O artigo 926 do CPC estabelece que os Tribunais de Justiça devem unificar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, em conformidade com o sistema de precedentes adotado, o que evidencia a necessidade de alinhar as decisões exaradas ao princípio constitucional da segurança jurídica.

Essa previsibilidade nas decisões ajuda a evitar a disseminação de diferentes interpretações legais sobre casos semelhantes que, devido à sua semelhança, merecem tratamento igualitário. A norma do CPC é obrigatória: em casos de divergência, o Tribunal de Justiça deve resolver o conflito e, se necessário, emitir um enunciado correspondente à tese predominante.

Os deveres de estabilidade, integridade e coerência, mencionados no artigo 926 podem ser confundidos, às vezes, com o próprio conceito de uniformidade. No entanto, a uniformização é apenas um dos deveres relacionados à construção e manutenção do sistema de precedentes estabelecido pelo CPC/2015. Estabilizar implica manter o que já foi padronizado; uniformizar, por seu turno, não tem utilidade se o Tribunal de Justiça não preservar a estabilidade de suas próprias decisões, alterando rapidamente um entendimento aparentemente consolidado sem justificativa.

De outro lado, os deveres de coerência e integridade, embora complementares, não podem ser tratados como sinônimos. A coerência está relacionada à ideia de não contradição, ou seja, os Tribunais de Justiça devem manter uma relação harmoniosa entre suas decisões e todo o processo. Isso ocorre porque a coerência exige o dever de dialogar com os precedentes anteriores, até mesmo para superá-los e demonstrar o distinguishing. Por outro lado, a integridade refere-se à conformidade com o Direito, especialmente com as disposições constitucionais.

Cumpridos esses deveres, cabe ao Tribunal de Justiça consolidar o entendimento predominante em enunciados de súmulas, que terão caráter obrigatório em relação à própria instituição e aos juízes a ele vinculados. Isso evita a aplicação inadequada de entendimentos a uma série de  casos que, embora semelhantes em certos aspectos, são fundamentalmente distintos.

A norma do sistema processual estabelece, portanto, que a jurisprudência dos Tribunais de Justiça deve ser estável, íntegra e coerente, devendo todos os poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) agir com honestidade e boa-fé objetiva, na condição de princípios fundamentais da legalidade constitucional.

A jurisprudência, entretanto, é flexível assim como os eventos da vida, de modo que pode sofrer mudanças, naturalmente. O que a lei exige é uma justificativa adequada e específica para as alterações, sempre respeitando a segurança jurídica, a boa-fé e a confiança. O que a prática exige, por sua vez, é que a seleção de precedentes seja feita de forma qualificada a fim de manter a unidade e confiabilidade desta sistemática, o que demonstra ser um verdadeiro desafio no âmbito da cultura jurídica brasileira, tradicionalmente litigante e congestionada.

A aplicação de modelo de Inteligência Artificial para qualificar a seleção de precedentes judiciais e proporcionar maior agilidade na satisfação do direito

A introdução da Inteligência Artificial (IA) no sistema judiciário do Brasil marca o início de uma era de inovações que não apenas buscam eficiência, mas também uma transformação fundamental na administração da Justiça. Seu uso, já em andamento, está resgatando ao Judiciário uma característica que antes não era tão evidente neste setor: a agilidade.

O Programa Justiça 4.0, em uma iniciativa conjunta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Universidade de Brasília (UnB), debruçou-se sobre o desenvolvimento de um sistema de inteligência artificial (IA) para automatizar a verificação de precedentes qualificados do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Esse sistema foi desenhado para ser capaz de identificar e listar os precedentes qualificados dos Tribunais Superiores a partir do texto da petição inicial, classificando-os em ordem decrescente de similaridade, com um limite mínimo de 70% de correspondência.

Atualmente, a pesquisa de jurisprudência e precedentes qualificados é feita manualmente por servidores e magistrados, por meio de interfaces desenvolvidas pelos próprios Tribunais de Justiça. Ao buscar por palavras-chave, classe processual, assunto ou órgão, o usuário recebe uma lista de processos relacionados e então inicia a análise individual dos resultados para identificar similaridades com os precedentes listados.

Esse processo é demorado e requer recursos humanos e materiais significativos. Além disso, os parâmetros de busca variam entre os órgãos jurisdicionais, que possuem infraestruturas e procedimentos de consulta distintos.

A automação desses processos visa reduzir a necessidade de alimentação e verificação manual de dados por magistrados e servidores, com o objetivo de diminuir erros materiais nos processos, garantir maior uniformidade jurisdicional e otimizar a força de trabalho, resultando em ganhos de eficiência e produtividade para o Judiciário. Espera-se que o algoritmo desenvolvido contribua para aumentar a segurança jurídica ao aprimorar a aplicação de precedentes qualificados, especialmente na primeira instância.

Além disso, o modelo tem potencial para acelerar a análise de processos judiciais afetados pelo sistema de precedentes qualificados, uma atividade que atualmente depende principalmente de processos de gestão manuais. Os resultados promissores do uso da IA até agora coletados mostram que essa agilidade pode ser mantida de forma sustentável quando baseada em dois pilares principais: a análise extensiva de dados e a automação de processos e rotinas.

A aceleração dos processos judiciais por meio da IA é especialmente notável, considerando a histórica crítica de lentidão do Judiciário, frequentemente sobrecarregado por volumes enormes de casos e pela repetição sistemática de rotinas e procedimentos. A automação de rotinas, ao digitalizar e categorizar documentos, oferta economia de tempo e reduz um dos maiores desafios do Judiciário brasileiro: a escassez de recursos humanos qualificados e a crescente dificuldade de contratação de servidores.

Ao liberar as pessoas de tarefas repetitivas, a IA possibilitará que juízes e outros profissionais do Direito se dediquem a aspectos mais complexos e substanciais dos processos, tornando mais fluido todo o fluxo e as etapas processuais. Isso redefine a forma como a Justiça é administrada a partir dos contornos técnicos e sociais da digitalização, tornando-a mais eficiente, consistente e acessível.

A aplicação de soluções tecnológicas ao sistema de precedentes, portanto, traz diversos benefícios, tais como: (i) aumentar a capacidade do Poder Judiciário de gerenciar seu acervo processual de forma racional, reduzindo a margem para interpretações subjetivas que possam prejudicar a consolidação do sistema de precedentes; (ii) possibilitar a emissão de decisões mais consistentes e igualitárias ao identificar com precisão casos semelhantes que merecem tratamento equivalente; (iii) agilizar os julgamentos que devem seguir uma tese obrigatória; e, por fim, (iv) tornar o Judiciário mais eficiente e confiável, proporcionando segurança jurídica nas diversas relações.

Modernamente, a aplicação e aprimoramento destas ferramentas tem se expandido ano a ano dentro do ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com o Painel de Projetos de IA do CNJ, houve um aumento considerável na adoção de ferramentas de inteligência artificial.

Em 2021, havia um total de 41 projetos em 32 Tribunais de Justiça; por sua vez, no ano de 2022, já eram contabilizados 111 projetos (63 em uso) em 53 Tribunais de Justiça do país. Entretanto, como toda inovação, alguns desafios são apontados pela doutrina especializada como carentes de melhor enfrentamento: (i) falta organização sistemática das decisões judiciais, que é incentivada pela independência decisória e pelo excesso de subjetivismo dos magistrados (muitas vezes, os juízes priorizam expressar um posicionamento pessoal ao invés de estabelecer um padrão decisório objetivo, recorrendo às ementas apenas para justificar seu posicionamento com base em argumentos de autoridade); (ii) na aplicação de precedentes, há falta de compromisso com a identificação dos fatos que fundamentaram o entendimento vinculante, bem como há um descuido com a definição objetiva da ratio decidendi, que frequentemente se confunde com um excesso de obiter dictum; e (iii) há grave demora na consolidação de precedentes qualificados, causando instabilidade na sua manutenção.

A Inteligência Artificial na advocacia securitária: identificação de precedentes qualificados no processo civil brasileiro

Como elemento central do presente estudo, procedeu-se ao enfrentamento do tema relacionado à repercussão do uso de ferramentas de IA no sistema dos recursos repetitivos, em específico no âmbito dos processos judiciais envolvendo contrato de seguros. O exame foi realizado sem que se adentrasse no teor das súmulas propriamente ditas, mas sim sob a ótica dos requisitos de admissibilidade e mérito ou fundamento recursal.

Averiguando-se o contexto atual, percebeu-se que a adoção sobressalente dos mecanismos de inteligência artificial na etapa de triagem de processos torna imprescindível a utilização de correta dos termos técnicos no momento de nomenclatura de seguros, sob pena de terem as partes e seus respectivos procuradores de lidar com os impactos negativos que podem ocorrer caso não nomeadas adequadamente as peças instrumentalizadas.

Nas palavras de Barbosa Moreira:

Todo ato postulatório sujeita-se a exame por dois ângulos distintos: uma primeira operação destina-se a verificar se estão satisfeitas as condições impostas pela lei para que o órgão possa apreciar o conteúdo da postulação; outra, subsequente, a perscrutar-lhe o fundamento, para acolhê-la, se fundada, ou rejeitá-la, no caso contrário. Embora a segunda se revista, em perspectiva global, de maior importância, constituindo o alvo normal a que tende a atividade do órgão, a primeira tem prioridade lógica, pois tal atividade só se há de desenvolver plenamente se concorrerem os requisitos indispensáveis para tornar legítimo o seu exercício.

No que diz respeito à admissibilidade e à presença das condições da ação, Wambier e Talamini dizem que:

O juízo de admissibilidade dos recursos consiste na verificação, pelo juízo competente, para a sua realização, da presença dos requisitos de admissibilidade da espécie recursal de que se tenha servido à parte para impugnar a decisão que lhe foi desfavorável. Trata-se de fenômeno assemelhado ao que ocorre com a ação. Nesta, o juiz só procederá ao exame do mérito (isto é, do pedido formulado pela parte na petição inicial), se superado com sucesso o juízo de admissibilidade, isto é, se verificar que estão presentes as condições da ação e os pressupostos processuais negativos.

Sobre a classificação dos requisitos de admissibilidade, embora não constitua o elemento central do presente trabalho, é digna de nota a ausência de unanimidade doutrinária sobre o tema, cujo superficial exame demonstra ser relevante ao deslinde do problema de pesquisa eleito. Para Barbosa Moreira eNelson Nery Junior, existem dois grupos: (i) os requisitos intrínsecos, que se relacionam ao direito de recorrer da parte insatisfeita com a decisão, abrangem o cabimento, a legitimação para recorrer, o interesse em recorrer e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo; e os (ii) pressupostos de admissibilidade recursal extrínsecos, que são aqueles que guardam relação com o modo de se exercer o direito ao recurso pela parte recorrente, relacionando-se com a tempestividade, a regularidade formal e o preparo.

Para Ovídio Baptista da Silva, e Moacyr Amaral Santos, os pressupostos recursais se dividem em duas espécies: (i) aqueles que dizem respeito ao recurso em si e (ii) aqueles que tratam da pessoa do recorrente. Porém, quanto ao ponto, o que importa elucidar não são os requisitos propriamente ditos, visto que tanto a legislação como a doutrina dão conta de orientar juridicamente os profissionais do Direito quanto ao tema. O que deve ser analisado, inclusive para viabilizar o correto e eficiente manejo da inteligência artificial no sistema recursal brasileiro, é a adequada catalogação das peças advocatícias, bem como dos documentos que as acompanham.

Em se tratando de seguros, matéria técnica e contemplada de especificidades, dotada até mesmo de glossário próprio, deparam-se os experts com a seguinte indagação: pode a inteligência artificial, treinada pelo ser humano e por sistemas da própria IA, definir padrões a partir da leitura de expressões, textos e palavras, se não for bem alimentada pelos operadores do direito?

A fim de encontrar respostas, pesquisou-se de que maneira a IA coleta dados e se utiliza de sistemas já existentes para montar o seu catálogo de conhecimento e precedentes. Entre a vasta gama de elementos que compõem a IA, vale fazer-se menção a uma diferença fundamental entre algoritmos de análise de dados – que fazem entrecruzamento de dados estruturados em busca de padrões e correlações – e algoritmos que compõem sistemas capazes de aprender sozinhos por aprendizado de máquinas (machine learning). No particular, destaca-se que apenas o machine learning “é capaz de analisar, fazer correlações e buscar padrões a partir de dados não estruturados: fotos, textos e dados coletados por smartphones e sensores”.

Nas palavras do jurista Thiago Junqueira:

De acordo com definição fornecida pelo grupo independente de peritos europeus de alto nível sobre a IA, os sistemas de IA são de: (…) software (e eventualmente também hardware) concebidos por seres humanos, que, tendo recebido um objetivo complexo, atuam na dimensão física, ou digital percepcionando o seu ambiente mediante a aquisição de dados, interpretando os dados estruturados ou não estruturados recolhidos, raciocinando sobre o conhecimento ou processando as informações resultantes desses dados e decidindo as melhores ações a adotar para atingir o objetivo estabelecido. Os sistemas de IA podem utilizar regras simbólicas ou aprender um modelo numérico, bem como adaptar o seu comportamento mediante uma análise do modo como o ambiente foi afetado pelas suas ações anteriores.

Entre esses sistemas de aprendizado de máquina que, sem uma explícita programação, são capazes de se alterarem para melhor efetuarem uma determinada tarefa, há uma subdivisão baseada na supervisão ou não do processo de aprendizado. Enquanto no primeiro, de forma geral, é possível que o programador corrija constantemente o sistema ao longo do seu processo de treinamento e calibragem e, por fim, verifique minimamente o caminho percorrido pelo algoritmo até a tomada de decisão, no segundo, ou seja, no aprendizado não supervisionado pelo sistema de IA, o desenvolvimento do algoritmo e o racional por trás dos resultados das decisões muitas vezes escapam à possibilidade de compreensão dos seres humanos. Exemplo conhecido desse segundo caso são alguns sistemas de IA compostos de redes neurais artificiais que utilizam da técnica de aprendizagem profunda.

Superado o tópico atinente ao comportamento dos sistemas da IA, pode-se conectar a matéria de seguros, observados alguns temas repetitivos já editados pelas Súmulas n.º 101 e n.º 620 do STJ: a primeira trata sobre prescrição ânua para o segurado ajuizar demanda contra a seguradora; e a segunda se relaciona com as hipóteses em que o segurado, ao dirigir embriagado, caso venha a provocar o acidente, pode perder o direito à indenização do automóvel, em caso de confirmação do estado de embriaguez.

Tomando-se por base os exemplos acima, traz-se à baila a hipótese nefasta, porém plausível, na qual um tema atinente à matéria securitária, ao adentrar nos Tribunais Superiores por meio de recurso repetitivo, se depara com obstáculos em seu julgamento causados pelo sistema de inteligência artificial que, ao ser mal alimentado, capturou informações com terminologia equivocada, identificando o recurso como inapto para análise de mérito e resultando em um despacho denegatório a lhe causar prejuízos.

Essa situação hipotética deixa claro que, por exemplo, o termo “prêmio25” do seguro, que pode envolver outras expressões tais como “prêmio puro”, “adicional”, “de resseguro”, ou seja, terminologias próprias da técnica securitária, se empregado equivocadamente, ou sem conhecimento específico por parte do operador do direito, pode gerar uma leitura diferente no momento do sistema de IA coletar, selecionar e encaminhar o recurso para a análise de admissibilidade. Idêntico risco existe nos casos de aplicação de técnicas de aprendizado profundo (deep learning), em razão de interpretação literal e contextual deficiente. Nessa hipótese, caso a IA treinada confunda “prêmio” com “benefício” e, assim, desvirtue a controvérsia, ou erre na seleção do recurso representativo, podem ser escolhidos casos que não traduzam fielmente a discussão jurídica.

Como visto, a IA necessita ser treinada com adequada expertise, sendo necessário que os especialistas em direito dos seguros forneçam fontes qualificadas, sem subestimar aspectos relevantes que terminem por excluir terminologias específicas, a fim de não misturar conceitos de resseguro com cosseguro ou retrocessão, por exemplo. Partindo-se da premissa que o STJ visa estabelecer tese jurídica uniforme para controvérsias semelhantes, a seleção de casos inadequados ou irrelevantes devido ao uso incorreto de termos técnicos pode comprometer a qualidade da tese fixada.

Será que se chegaria ao ponto de se presenciar uma violação ao Princípio da Isonomia? Se a negativa de admissibilidade causada por erro no entendimento de nomenclatura pode deixar de uniformizar decisões que deveriam ser tratadas sob a mesma perspectiva jurídica, de fato se teria situações similares tratadas de forma desigual, restando ferido de morte o princípio da isonomia. Retomando-se o exemplo de confusão entre os termos “prêmio puro” e “prêmio”, nesta hipótese a errônea aplicação terminológica poderia levar a exclusões indevidas de discussões sobre cálculos atuariais, prejudicando segurados ou seguradores.

Além disso, inúmeros poderiam ser os prejuízos causados ao direito das partes por decisão desfavorável; por erro na interpretação do tema pela IA a resultar na não admissão de um recurso válido, encerrando indevidamente a possibilidade de revisão; ou ainda, por fragilidade técnica na tese jurídica, caso um recurso repetitivo fosse admitido com base em interpretação equivocada, resultando em decisões que não são aplicáveis a todas as situações similares.

O setor de seguros, portanto, deve estar atento a revisitar procedimentos, a realizar uma qualificação mais aprimorada, pois, partindo-se da atenção ao que está sendo decidido nos Tribunais de Justiça, é possível averiguar a capacidade técnica nas questões complexas.

Atualmente, relevante sugestão que se pode fazer aos operadores do direito é que se dediquem com afinco ao estudo do texto da recente Lei de Seguros, sancionada em dezembro de 2024, e que está no período de vacacio legis, com entrada em vigor programada para dezembro de 2025. Tal sugestão decorre do fato de que a nominada legislação é um marco importante, o qual reúne jurisprudência pacificada e legislações especiais, tais como o Código de Defesa do Consumidor, Resoluções e Circulares do Conselho Nacional de Seguros e Susep, além de usos e costumes de vários anos que vêm a servir de bússola para que sejam redigidos termos contratuais mais claros, objetivos, transparentes e que repercutem de maneira positiva para o judiciário.

Em caso de dúvidas quanto à transparência dos critérios de análise pela IA, torná-los auditáveis pode evitar a proliferação de ações judiciais individuais em temas que poderiam ter sido resolvidos de forma uniforme e sem aumentar o congestionamento do judiciário, indo na contramão do propósito dos recursos repetitivos. Além disso, a constância nos treinamentos de servidores pelos Tribunais Superiores é extremamente importante, oportunizando revisitação criteriosa por supervisão humana em processos decisórios de maneira multidisciplinar para a programação da inteligência artificial.

Os sistemas de Inteligência Artificial Victor no Supremo Tribunal Federal e Sócrates e Athos no Superior Tribunal de Justiça do Brasil

Em 2017, foi implementado no STF o sistema de inteligência artificial chamado Victor, que recebeu o nome em homenagem a Victor Nunes Leal (falecido), ministro da Corte Suprema no período de 1960 a 1969; autor da obra “Coronelismo, Enxada e Voto”; e principal responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em súmulas, o que facilitou aplicação dos precedentes judiciais aos recursos.

O propósito do seu desenvolvimento é o de auxiliar na triagem de recursos extraordinários a partir da utilização da técnica de processamento de linguagem natural (NLP)27 a fim de analisar petições e identificar a presença de repercussão geral, requisito para admissão de recurso extraordinário pelo STF.

Outrossim, o seu objetivo também envolve a ideia de acelerar a triagem de processos e sua execução mediante quatro atividades: conversão de imagens em textos no processo digital ou eletrônico; separação do começo e do fim de um documento (peça processual, decisão, etc); separação e classificação das peças processuais mais utilizadas nas atividades do STF; e a identificação dos temas de repercussão geral de maior incidência. A solução de tecnologia que possibilita a pesquisa textual das peças do processo e sua leitura por máquina (ocerização) encontra-se efetivamente implementada desde o final de dezembro de 2020 para as classes recursais, recurso extraordinário e recurso extraordinário com agravo.

Em 2019, no STJ, o sistema de inteligência artificial chamado de Sócrates (homenagem ao filósofo grego), primeiramente na versão 1.0, iniciou com análise semântica das peças processuais com objetivo de facilitar a triagem de processos e identificar casos com matérias semelhantes e pesquisa de julgamentos do tribunal que pudessem servir como precedente para o processo em exame. Posteriormente, surgiu o Sócrates 2.0, ferramenta capaz de apontar o permissivo constitucional invocado para a interposição do recurso, os dispositivos de lei descritos como violados ou objeto de divergência jurisprudencial e os paradigmas citados para justificar a divergência.

Sem a pretensão de substituir a inteligência, a competência e a mão de obra humanas, o Sócrates 2.0 foi concebido como uma plataforma composta por: 1) Sistema de Gerenciamento de Normas, 2) Sistema de Gerenciamento de Controvérsias, 3) Sistema de Gerenciamento de Modelos, 4) Pesquisa Automática de Jurisprudência, 5) Pesquisa Automática de Doutrina; e 6) Sistema de Gerenciamento de Acervo por Controvérsias.

Ainda, o sistema faz a identificação de recursos potencialmente inadmissíveis, indicando os requisitos do REsp: 1) ausência de indicação do permissivo constitucional; 2) ausência de indicação do dispositivo violado; 3) alegação de ofensa a norma constitucional, não federal ou infralegal; 4) dispositivo violado não associado a controvérsia; 5) ausência de dispositivo interpretado divergentemente; 6) ausência de paradigma; 7) indicação de paradigma não vinculado a dispositivo interpretado divergentemente; 8) indicação de paradigma oriundo do mesmo tribunal do acórdão recorrido; 9) dispositivo interpretado divergentemente não associado a controvérsia; 10) paradigma não associado a controvérsia, dentre outros.

Outro sistema, este chamado de Athos em homenagem ao Ministro Athos Gusmão Carneiro, foi criado em 2019 com o objetivo de identificar, mesmo antes da distribuição aos ministros, processos que pudessem ser submetidos à afetação para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos. O seu intuito é auxiliar o agrupamento de feitos, visando à geração de decisões iguais com base em modelos precedentes. E, a partir da identificação desde precedente semântico, a produção da solução judicial para o caso em análise tende a ser mais rápida do que aquela formulada sem a identificação prévia.

Neste contexto, celeridade processual contribui para decisões a um custo unitário menos, prestigiando também o princípio da economicidade. Além disso, o Athos monitora e aponta processos com entendimentos convergentes ou divergentes entre os órgãos fracionários da corte, casos com matéria de notória relevância e, ainda, possíveis distinções ou superações de precedentes qualificados.

No âmbito do STJ, o Sistema Athos possibilitou, por exemplo, a identificação de 51 controvérsias – conjuntos de processos com sugestão de afetação ao rito dos repetitivos – e a efetiva afetação de 13 temas. Ao final, a ideia é fornecer um espelho do recurso, com a tese, os fundamentos e as soluções, sem a necessidade de se ler o recurso. Com isso, se disponibilizam sugestões, conferências e validações dos caminhos a serem trilhados pelo prolator da decisão.

Na prática, é possível observar os impactos causados pelo uso da inteligência artificial no sistema judicial brasileiro, destacando-se dentre estes a qualificação agregada ao rito dos repetitivos no âmbito do STJ. Sanseverino e Marchiori trazem dois exemplos que ilustram a importância dessa atuação, sendo um da Seção de Direito Público (Primeira Seção) e outro da Seção de Direito Privado (Segunda Seção).

A primeira Seção do STJ, com o julgamento do Tema Repetitivo n.444, definiu o prazo prescricional para o redirecionamento da Execução Fiscal, estimando-se, conforme dados do Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios do Conselho Nacional de Justiça que, na época da apreciação do tema, havia cerca de 12.000 processos sobrestados, aguardando a resolução da controvérsia. No entanto, o impacto desse tema chegou a seis milhões de processos somente no âmbito federal, conforme informações da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, o que possibilitou a resolução de um significativo número de feitos até então pendentes de exame.

Outro exemplo trazido pelos autores ilustra o impacto de um julgamento pelo STJ sob o rito dos repetitivos no âmbito do Tema Repetitivo n.º 710, em que se definiu a legalidade do sistema CreditScore, desde que respeitados determinados requisitos. No momento da afetação da questão para julgamento repetitivo, identificou-se em torno de 200.000 ações somente no Estado do Rio Grande do Sul. Após o julgamento, apenas na Comarca de Florianópolis, foram julgados de uma só vez 55 mil processos por um único juiz, conforme informação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Os autores concluíram que a resolução qualificada da matéria pela Segunda Seção do STJ evitou o alastramento da questão para outros Tribunais de Justiça, pois certamente ela seria objeto de inúmeras ações pelo país em virtude do impacto direto nas relações comerciais de toda a sociedade, independentemente do local de domicílio.

Ao reduzir a vazão de processos que ingressam no STJ, a sistemática aplicação da IA aos recursos repetitivos alcança seu objetivo ao concretizar os princípios da celeridade na tramitação de processos, da isonomia de tratamento às partes processuais e da segurança jurídica. É cediço que a meta dos Tribunais de Justiça, além da celeridade, é filtrar cada vez mais o número de recursos atinente a matérias que sequer deveriam ser submetidos a julgamento, e o sistema de inteligência tem contribuído para que isto ocorra, nitidamente.

O Athos, em seu protagonismo no apoio à seleção de recursos aptos e de candidatos a temas em recurso repetitivo, demonstrou crescente evolução, pois os logs37 registrados em seu banco de dados, disponibilizados pela IA do STJ, demonstram seu desempenho na criação de grupos e identificação de processos paradigmas. Assim, os números registrados em logs indicam que, somente em 2020, foram criados 146 grupos pelos operadores do sistema Athos, os quais identificaram 1.694 processos paradigmas em um universo de 36.809 processos analisados. Já no ano de 2021, os registros indicam a criação de 262 grupos, isto é, 79,45% a mais que o ano anterior.

A identificação de processos paradigmas também sofreu um salto de 34,06%, ao alcançar o número de 2.271. O número de processos analisados, nesses dois critérios, em 2021 foi de 43.108, ou seja, 17,11% a mais que em 2020. Em um cenário comparativo entre os indicadores oficiais disponibilizados pela equipe do NUGEPNAC e os logs armazenados nos servidores da IA, observou-se que o Athos, no ano de 2020, criou 146 grupos, dos quais 144 foram utilizados pela equipe do Núcleo em seus estudos. No entanto, em 2021, a ferramenta de IA obteve um aproveitamento 79,45% superior aos grupos atualmente monitorados pelo Núcleo, ao disponibilizar 262 grupos diante dos 278 em estudo no NUGEPNAC.

Hoje, é possível também averiguar os dados estatísticos resultantes da aplicação da inteligência artificial no sistema judicial brasileiro, a sua contribuição para a economicidade e os desafios enfrentados pelo judiciário na gestão do processo de aprendizado, controle, supervisão da IA. Neste sentido, a plataforma SINAPSES, através de acesso pela internet, proporciona informações importantes, inclusive de pesquisa nos Tribunais de Justiça, sobre o uso da inteligência artificial e que viabiliza o acesso dos usuários ao painel de projetos de IA no poder judiciário, causando certa preocupação ao observar algumas dificuldades enfrentadas.

A pesquisa apresentada pelo sistema SINAPSES aponta benefícios e desafios enfrentados pelos diversos Tribunais de Justiça do Brasil, dentre estes o STJ, elencando os principais benefícios do sistema IA como sendo a maior eficiência e agilidade no processamento de documentos e informações; otimização de recursos e redução de custos operacionais; automatização de matérias repetitivas e burocráticas; redução do tempo de tramitação dos processos judiciais; identificação de padrões e tendências em grandes volumes de dados jurídicos.

Por outro lado, os principais desafios são: dificuldade de encontrar profissionais qualificados para trabalhar com a inteligência artificial; dificuldade na obtenção de dados (quantidade e/ou qualidade e/ou diversidade necessária); necessidade de adaptação dos processos e rotinas já estabilizados; complexidade na integração de sistema IA com os sistemas existentes; questões relacionadas a privacidade e segurança dos dados utilizados na solução da IA; dificuldade de obter recurso financeiro para sua implementação; questões de ética e de transparência no uso da IA na tomada de decisões judiciais; resistência de servidores e magistrados na adoção da IA; limitação do acesso à justiça e aos servidores judiciais; dentre outros.

Na pesquisa realizada, chama à atenção a preocupação sobre questões éticas no uso do sistema de IA por discriminação nos resultados obtidos pelos modelos por conta da base de treinamento do modelo e da falta de transparência nas decisões. A medida de precaução a este desafio implicaria o estabelecimento de diretrizes e políticas claras sobre o uso de IA no judiciário, além de resultar na implementação de mecanismos e na necessidade de explicar os resultados obtidos pela IA. Essa preocupação decorre do fato de que a máquina aprende com base de dados que o homem fornece, se valendo de dados históricos e de informações que podem ser passíveis de erro humano, o que demonstra a necessidade de constante readequação e supervisão de técnico capacitado.

O STJ, através de resolução n° 332 de agosto de 2020, dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário e dá outras providências. Dentre essas, destaca-se que os dados utilizados no processo de aprendizado de máquina deverão ser provenientes de fontes seguras, preferencialmente governamentais, passíveis de serem rastreados e auditados; o respeito aos direitos fundamentais; a necessidade de preservar a igualdade e não discriminação, a pluralidade e a solidariedade; a publicidade e transparência; regras de governança; segurança dos dados contra riscos de destruição, modificação, extravio ou acesso e transmissão não autorizado; o controle do usuário em que possibilite a supervisão, pesquisa e aperfeiçoamento constante e desenvolvimento e implementação dos serviços da IA e assegurar a prestação de contas e transparência com o fim de garantir o impacto positivo para os usuários finais e para a sociedade.

A supervisão humana sobre o resultado da atuação da máquina é uma das formas de interação homem-máquina. A configuração dos sistemas de modo a permitir que ambos os lados, homem e máquina, interajam continuamente dá origem a mecanismo chamado human in the loop, sendo um dos principais objetivos da revisão humana sobre o resultado produzido pela máquina a intenção de manter o controle da tomada de decisão nas mãos humanas. No entanto, é problemático confiar excessivamente nessa supervisão.

Uma das razões do problema é o viés de automação denominado machine bias; já o outro motivo decorre do viés cognitivo humano, que consiste na tendência humana de privilegiar os resultados gerados pelo sistema automatizado em função da crença de que estes estão embasados em operações matemáticas e, por isso, são científicos e estão corretos. A consequência é que o tomador de decisão acaba por sua discordar em relação ao resultado de sistemas de IA, aderindo total, ou parcialmente, seja porque não reconhece quando os sistemas automatizados erram, seja porque nem sequer dá importância a eventuais informações contraditórias.

Como alerta Dierle Nunes, é preciso um monitoramento rigoroso na implementação de alguns sistemas de IA no sistema de justiça, para que modelos algorítmicos enviesados não possam gerar erros em escala exponencial ou que modelos precisos não sejam aplicados com o objetivo de piorar a situação de alguns grupos que já sofrem preconceito.

A ideia é que o sistema de inteligência artificial, seja aproveitado por outros órgãos, como os Tribunais de Justiça de segunda instância, e que seja ampliado para executar outras tarefas de auxílio ao trabalho dos ministros dos Tribunais superiores, como a identificação de jurisprudência, por exemplo. Todas essas inovações, ainda que necessitem de aperfeiçoamento e sejam acompanhadas por críticas razoáveis, se apresentam como ferramentas em sintonia com os novos tempos, demonstrando que a união entre digitalização e humanidade é inevitável. Com efeito, o seu uso correto e o seu direcionamento atrelado às diretrizes normativas do Estado Democrático de Direito são capazes de trazer avanços e contribuições inestimáveis para os mais diversos ramos jurídicos, razão pela qual a ousadia, em seu campo de atuação, deve superar os receios tradicionalmente postos.

No âmbito do Programa Justiça 4.0, delineado pelo Conselho Nacional de Justiça, inaugurou-se a busca direcionada a tornar o sistema judiciário brasileiro mais próximo da sociedade, por meio da disponibilização de novas tecnologias e de modelos de Inteligência Artificial. Como pano de fundo, elegeu-se o propósito de impulsionar a digitalização do Judiciário visando garantir uma tutela jurisdicional mais adequada, efetiva e tempestiva, nos moldes preconizados pela própria legislação processual civil.

A justificar o emprego dessa roupagem contemporânea como método integrador da tradicional estrutura jurídica à sociedade digital, encontra-se o intuito de promover soluções tecnológicas colaborativas que automatizem as atividades dos Tribunais de Justiça, otimizando o trabalho dos magistrados, servidores e advogados. De fato, observa-se que o emprego de modelos de Inteligência Artificial tem aptidão para gerar maior segurança jurídica no sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro, pois é capaz de garantir mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos.

Ao identificar paradigmas qualificados e com maior aderência ao caso concreto, alcança-se uma menor taxa de erros materiais nos processos, maior uniformidade jurisdicional e otimização da força de trabalho, com ganhos de eficiência e produtividade ao Judiciário que permitem o engrandecimento da própria cultura jurídica nacional.

É cediço que a incorporação da IA nos Tribunais Superiores, corporificada através de sistemas automatizados de análise de dados e apoio à tomada de decisões, representa um marco significativo na evolução do direito. Mas essa revolução tecnológica tem de manter incólume o compromisso constitucional de isonomia, de contraditório, e de ampla defesa, que necessita constantemente ser supervisionado por um olhar apurado.

Além disso, é imprescindível a realização de um treinamento qualificado à IA pelo ser humano, mediante o uso de expressões e terminologias especificas que preservem a eficiência no exame de admissibilidade e na correlação com recursos repetitivos, em específico na matéria de contratos de seguro, cujos desfechos causam inquietações e descrédito das mais variadas naturezas, especialmente pela especificidade da técnica securitária em um país de diversas culturas e costumes.

Com isto, os operadores do direito securitário devem tomar ciência do papel extremamente responsável que desempenham, fazendo uso das suas prerrogativas de forma a preservar a adequação de palavras, termos e expressões em suas peças processuais. Ademais, devem primar pela utilização de ferramentas que facilitem e capacitem o sistema de IA a fim de promover melhor qualidade para ampliar a segurança jurídica a ser utilizada pelo sistema de precedentes judiciais, conferindo maior eficiência e efetividade no processo civil.

Por outro lado, são vários os desafios enfrentados pelo poder judiciário em sua empreitada de digitalização dos serviços. Dentre estes, pode-se citar a busca de mecanismos de controle sobre a máquina e a supervisão e readequação dos modelos de aprendizagem, o que inspira o uso de uma analogia do filósofo grego Sócrates. Este, em sua busca incessante pela verdade e pelo conhecimento, desenvolveu o chamado método socrático que envolve perguntas para estimular a reflexão crítica e a descoberta de novas ideias. O que diria Sócrates, ao conhecer o Sistema de IA “Sócrates”, sobre o homem-máquina? Quais as similitudes entre a virtualização pessoal e o exame personalizado?

Sócrates, o filósofo, na busca do homem em si; e Sócrates IA, a cópia humana treinada e supervisionada, a partir dos processos de digitalização tecnológica, se percebem aptos para, em conjunto, analisar, organizar e repassar informações jurídicas de maneira precisa e eficiente, auxiliando a alcançar decisões justas e fundamentadas em que são analisados grandes volumes de dados e identificados padrões de conduta legais e desviantes. Através disso, percebe-se uma dinâmica de trabalho sui generis entre homem e máquina, a atuar como ferramenta que questiona e examina detalhadamente as informações para chegar a conclusões bem fundamentadas.

* Felipe Dutra de Freitas é assessor jurídico na Procuradoria de Justiça Cível do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e professor de Direito no Centro Universitário UNIFAEL de Porto Alegre. Mestre em Direito, especialista em Compliance e Gestão de Riscos e em Direito Civil e Processo Civil. Graduado em Direito e participante do Grupo de Pesquisa Processo e Constituição (FMP).

Jaqueline Wichineski dos Santos é advogada, professora universitária, mestre em Direito e especialista em Direito Civil, em Processo Civil e em Direito dos Seguros, além de participante do Grupo de Pesquisa “Relações tensionais entre Mercado, Estado e Sociedade: Interesses públicos versus interesses privados.”

 

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