Responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos

Diretiva (UE) 2024/2853 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23.10.2024 – Revogação da Diretiva 85/374/CEE do Conselho

 

Por Walter Polido*

A União Europeia, com o intuito de promover a atualização das diretrizes relativas à responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos, antes mesmo de modificar a emblemática Diretiva 85/374/CEE, resolveu revogá-la, substituindo-a pela nova Diretiva (EU) 2014/2853. A normativa de 1985, convém relembrar, teve vários dispositivos transpostos para o Código de Defesa do Consumidor brasileiro, a Lei n.º 8.078, de 11.09.1990.

O novo texto da Diretiva, aprovada no mês passado, levou em conta as novas tecnologias, inclusive a inteligência artificial (IA), assim como a diversidade de modelos de negócios da economia circular e da cadeia de abastecimento mundial. O instrumento anterior já não atendia o cenário e as pretensões atuais e requeria um grau elevado de modificações.

A própria definição de “produto” passou por transformação significativa desde 1985. A segurança jurídica, em face da proteção dos consumidores, motivou a nova Diretiva. Os softwares passaram a integrar de forma destacada o conceito de produto e de uma maneira diversificada, na medida em que eles podem ser integrados a outros produtos ou instalados. Os programadores ou produtores de softwares, inclusive os de sistemas de IA devem ser considerados fabricantes.

O novo instrumento normativo, contudo, não se aplica para software livre e de fonte aberta, desenvolvido ou fornecido fora do âmbito de uma atividade comercial. Sobre essa questão, a nova Diretiva traz variáveis que devem ser apreciadas com especial atenção. O software livre, na hipótese de ele ser integrado por um fabricante como componente num produto, no âmbito de uma atividade comercial, a responsabilidade decorrente será alcançada pela Diretiva. Há, também, a hipótese de o produto, para ser utilizado, precisar da integração à internet e, no caso da perda de conectividade, ele pode ser considerado defeituoso.

Produtos que podem ser alterados, atualizados e evoluídos no respectivo software, se implicarem naquilo que a Diretiva determina como sendo uma “modificação substancial”, seja pela evolução natural da tecnologia, seja pela aprendizagem contínua da IA, a consequente responsabilização está ao abrigo da Diretiva e, nesse particular, emerge outra questão que é justamente o “momento” no qual a modificação substancial foi realizada, cujo marco pode estabelecer um “novo produto”.

De acordo com a evolução do movimento que se denomina “economia circular”, em transição a partir da então “economia linear”, através da qual os produtos devem ser mais duradouros, reutilizáveis, reparáveis e atualizáveis, desponta também aqui a questão do “momento” no qual o produto foi colocado em circulação, além do fato de que o processo pode ter sido realizado por outras pessoas que não o fabricante original.

O controle ou não do fabricante original sobre o produto atualizado, também deve ser apreciado para a devida imputação de responsabilidade, sendo que alguns tipos de software permitem que o fabricante mantenha o controle, ainda que remotamente.

Convém destacar, relembrando, que as Diretivas mencionadas se aplicam, exclusivamente aos consumidores (pessoas singulares) e não a empresas. Diferem, portanto, da abrangência encontrada no CDC brasileiro, cujo conceito de consumidor engloba pessoa física e pessoa jurídica, nos termos do art. 2º do referido Código. Outro ponto relevante, o fato de que as Diretivas se concentram na pré-condição do “defeito” do produto, para então serem aplicadas.

Com base nessa premissa, impende destacar que a responsabilização contratual ou extracontratual do fabricante, não decorrente do defeito de um produto, se mantém sob o comando dos demais ordenamentos jurídicos dos respectivos Estrados-Membros. A responsabilidade objetiva advinda de organismos geneticamente modificados, por exemplo, se situa nesse campo fora das Diretivas em comento. Deve ser considerado, ainda, que em alguns países da UE a responsabilização do fabricante de determinado tipo de produto é legislada de forma particularizada, assim como ocorre com os produtos farmacêuticos na Alemanha, sendo que a responsabilidade do fabricante não fica limitada à incidência de defeito no medicamento. Seja como for, o direito do consumidor não é afetado pelas Diretivas, em tais situações particularizadas e nem haveria como isso acontecer.

A nova Diretiva estabelece que os Estados-Membros devem transpor os dispositivos para os respectivos ordenamentos nacionais, até o dia 9 de dezembro de 2026. Até lá, conviverão com a Diretiva 85/374/CEE em relação aos produtos colocados ou que tenham entrado em serviço antes daquela data no mercado consumidor.

São conceitos contemporâneos que decorrem da evolução tecnológica e nenhuma sociedade pode ignorá-los. A evolução legislativa tem o condão de priorizar a segurança jurídica, diminuindo os conflitos e aplacando a produção jurisprudencial que acaba se avolumando em face das lacunas do ordenamento e da obsolescência acentuada que é propiciada pela evolução tecnológica, muito mais célere do que a produção legislativa.

 

* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, advogado, técnico-especialista em seguros e resseguros, consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros, também é árbitro em seguros e resseguros, parecerista, professor universitário e escritor.

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