Por Walter Polido*
A produção de textos expressando opiniões sobre este tema tem se acentuado no mercado internacional de seguros e resseguro, sendo que se apresenta com menor intensidade no Brasil. A reputação da indústria mundial seguradora e resseguradora, inclusive, está em jogo diante dessa pandemia que atingiu todos os mercados. Para um setor que “vende expectativa de proteção em momentos difíceis”, não poderá haver recuo e, tampouco, indefinições.
São observadas no País, manifestações públicas de algumas seguradoras sobre o acolhimento da cobertura para os sinistros que forem reclamados, apesar da exclusão expressa ou indireta do risco de “pandemias” nas apólices, notadamente em relação aos seguros de pessoas: Vida e Assistência Funeral, com destaque. Há, também, algumas poucas manifestações contrárias ao pagamento e sob os mais diversos argumentos, inclusive de natureza jurídica e mesmo regulatória.
O seguro tem de ser útil para quem o contrata. Essa verdade é incontestável e por si só, já desconstrói determinadas argumentações, ainda que aparentemente jurídicas, uma vez que a “principiologia” do direito é muito mais ampla do que a simples letra fria dos contratos, incluindo os de seguro. Entra em jogo, também, aquilo que os doutrinadores ou juristas chamam de “diálogo das fontes”, a outra ferramenta poderosa para o entendimento completo (sistemático) do direito a ser aplicado de fato a uma situação concreta.
Com este sentido, a análise deve ser ampla: Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso, Princípios Gerais do Direito e todas essas múltiplas fontes analisadas sob a égide da Constituição Federal da República, a qual consagra, entre os fundamentos erigidos pela sociedade brasileira, o princípio máximo da “dignidade da pessoa”. O contrato de seguro deve, necessariamente, passar por este filtro analítico. Então, para a interpretação e a aplicação do direito (hermenêutica), não basta apenas a apólice de seguro e os seus termos e condições. Ela é múltipla, necessariamente.
Direto ao ponto no seguro de vida e seus desdobramentos:
(a) todos sabem que neste seguro a álea repousa apenas na data da morte do segurado, diferentemente dos seguros de danos, nos quais ela se situa no risco (se ele se efetivará ou não);
(b) em razão da certeza absoluta, contida no item anterior, os atuários das seguradoras determinam vários fatores em suas modelagens matemáticas de composição do prêmio, dentre eles a possível antecipação da morte;
(c) há também, em direito, a questão do adimplemento substancial, ou seja, se o segurado já pagou parte representativa do prêmio, não haverá como negar a contraprestação representada pelo pagamento da indenização do sinistro ocorrido;
(d) não pode ser preterida, ainda, a aplicação financeira de parte das reservas, realizada pelas seguradoras, sendo que nem sempre o resultado obtido reverte a favor da mutualidade, sendo que no exterior este tema já movimentou outros mercados, inclusive em sede judicial, com base no que eles chamaram de “reservas ocultas”;
(e) o Código de Defesa do Consumidor, principiológico na sua essência, protege o consumidor em primazia, podendo ser suplementado, no que couber, pelo Estatuto do Idoso.
Ainda, convém informar o volume de prêmios e sinistros recebidos/pagos no ano de 2019 pelo mercado de seguros brasileiro:
“o seguro de vida movimentou R$ 43,1 bilhões, um crescimento de 14% em relação a 2018. O volume de indenizações pagas não chegou a R$ 10 bilhões. Neste ano, no entanto, a previsão é de alta significativa. Tanto por mortes, como também por inadimplência no crédito em bancos, operação que geralmente conta com um seguro prestamista que é acionado em caso de não pagamento da dívida. Esse seguro tem um peso considerável nas seguradoras ligadas a bancos, que são as maiores do ranking do setor”.
Com base neste quadro numérico-financeiro, a preocupação já demonstrada por alguns operadores do direito quanto ao dever de as seguradoras “salvaguardarem a solvência do sistema, cuja mais grave ameaça é a quebra da base técnica-atuarial”, não parece corresponder à realidade e o argumento, que seria um pretenso filtro de impedimento, se rompe completamente. A preservação da “mutualidade”, outro argumento utilizado por aqueles que ainda defendem o não pagamento, não pode servir de sucedâneo para a inversão da ordem lógica e factual na atividade seguradora.
Ora, é sabido que grande parte da população que será atingida fatalmente pela pandemia no Brasil não possui seguro de vida e as razões deste quadro são várias, sendo que a principal delas é porque ele ainda é muito caro no País, se comparado a outros países, e sequer é disseminado como poderia ser.
O universo de pessoas que estará sob o abrigo do contrato de seguro, em face do coronavírus, tudo indica que jamais terá o condão de afetar a estabilidade financeira das seguradoras que operam no Brasil e elas possuem, ainda, proteção de resseguro. Se não têm é porque ainda não entenderam a importância desse mecanismo, de natureza internacional e não puramente doméstica, como alguns ainda entendem que deve ser, justamente para pulverizar riscos catastróficos pelo mundo.
É o momento adequado, inclusive, para aprenderem com a pandemia do coronavírus e reverem os seus contratos de resseguro, dos diversos ramos, de modo a buscarem nível adequado de proteção também sob este viés. O coronavírus não é nem será o único fator gerador de riscos catastróficos no Brasil. A abertura do mercado de resseguro se deu em 2007 (Lei Complementar n.º 126) e o processo ainda não foi completamente consolidado no Brasil. É o momento, portanto.
Aqueles que defendem, ainda, o não pagamento em face de possível sanção que poderá ser impetrada pelo Órgão Regulador, a questão não pode servir de escudo para as seguradoras deixarem de cumprir a “função social” que a atividade lhes reserva e num momento de excepcionalidade como este, sem precedentes. Além disso, as próprias normas reguladoras preveem mecanismos que podem exonerar as Seguradoras e por conta de caso fortuito ou força maior e, também, pelo fato de que os atos realizados pelos dirigentes das Companhias não se pautaram na má-fé ou dolo.
As questões contidas neste texto despertam discussões acirradas e não uníssonas. De todo modo, elas não podem ser reduzidas ao padrão binário e simplificado contido no “risco coberto” – ou – “risco excluído”, notadamente nos meios mais especializados em seguros. Há que prevalecer o domínio da “lógica da razoabilidade”, ou seja, as bases contratuais devem ser subsumidas simultaneamente às normas jurídicas e às circunstâncias que envolvem o tema de fato.
Somente sob a regência do princípio da razoabilidade a pretensão de eleger a solução mais justa para as questões poderá ser alcançada. A solução, sob este princípio lógico, deve levar em conta as circunstâncias sociais, econômicas, culturais e políticas que envolvem a questão, sem se afastar dos parâmetros legais.
O seguro, repise-se, deve ser útil para quem o contrata e também no momento certo. Os princípios contratuais subjacentes ao negócio do seguro – lealdade, probidade, expectativa da confiança, cooperação, proteção adequada e outros, não podem ser preteridos e tampouco se tornarem apenas narrativas acadêmicas vazias, contidas nas obras doutrinárias e nos discursos inflamados.
Sobre todos os argumentos precedentes, se destaca o princípio geral de direito indicado no artigo 5º da LINDB, o qual consolida toda a discussão sobre o tema: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
A importância da atuação dos Corretores de Seguros, neste momento, fica claramente evidenciada, pois eles têm o dever profissional:
1. De buscarem o melhor e mais adequado atendimento aos clientes, tendo em vista os argumentos apresentados, sucintamente, neste texto;
2. De não aceitarem, em primeiro plano, eventuais negativas de pagamento de sinistros indicadas por Seguradoras;
3. De buscarem amparo jurídico especializado, se necessário;
4. De estabelecerem como padrão de escolha de Seguradoras para a colocação dos seus negócios os procedimentos observados em momentos de crise como este;
5. De observarem, sempre que for possível e com base também no item precedente, a fidelização das parcerias negociais – Corretor-Seguradora-Segurado -, cujo procedimento favorece e muito nos momentos cruciais como este. Os Segurados devem, de alguma forma, ser cientificados desse padrão negocial recomendado.
Este tema, da pandemia do coronavírus e os seguros, apresenta ainda muitos desdobramentos e em relação a outros ramos do setor, os quais serão abordados através de textos isolados, oportunamente.
* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, advogado, técnico-especialista em seguros e resseguros, consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros, também é árbitro em seguros e resseguros, parecerista, professor universitário e escritor.
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