A função social do seguro em 10 pontos

Por Lúcio Roca Bragança*

 

Segundo dados da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg), no mês de janeiro de 2023, houve um acréscimo de 19,7% na demanda por produtos de seguro, planos de previdência complementar aberta e títulos de capitalização (sem contar DPVAT e Saúde Suplementar) em relação ao mesmo mês de 2022, o que resultou em uma arrecadação de R$ 31,2 bilhões. A participação do setor no PIB tem-se mantido nos últimos anos em uma média que gira torno de 6,5%.

Mas qual é a relevância social destes dados? Seria o efeito social do contrato de seguro o de gerar uma maior concentração de riqueza, extraindo o dinheiro da contribuição de muitos para condensar na mão de poucos? Ou, dito de outro modo, seria o seguro um meio de deixar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres?

Seguidamente, parece ser esta a visão que alguns intérpretes do direito mais radicais enxergam o contrato de seguro e justificam a necessidade de revisão dos contratos com base na função social prevista no Código Civil. Em termos jurídicos, a função social do contrato é usualmente considerada como uma limitação na liberdade de contratar em nome da igualdade. Em outras palavras, pode-se dizer que se trata de uma intervenção estatal na economia através do controle do conteúdo dos contratos – o que é frequentemente perpetrado nos tribunais.

Mas aquilo que é uma intervenção estatal na liberdade em nome da igualdade pode muito bem ter um resultado reverso e prejudicar não só a liberdade, como a própria igualdade. Não é que não possa haver abusos decorrentes da liberdade, mas, muitas vezes, a garantia da liberdade será o mais eficaz instrumento para a obtenção de resultados sociais desejáveis. Ademais, o próprio conflito liberdade x igualdade constitui um erro conceitual, pois elas não são alternativas mutuamente excludentes. Como explica o prêmio Nobel Amartya Sen, “a liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição da liberdade.”

Quando a igualdade é considerada isolada de outros fatores, há a tendência de haver uma distorção por conta do desequilíbrio de cada aspecto sopesado. Outrossim, de acordo com Sen, é preciso ter clareza sobre qual o aspecto da igualdade se pretende prestigiar: “igualdade de oportunidades pode conduzir a rendas bastantes desiguais. Igualdade de riquezas pode coexistir com felicidade muito desigual. Igualdade de felicidade pode estar acompanhada de uma radical diferença na satisfação de necessidades. Igualdade na satisfação das necessidades pode estar associada com liberdades de escolha muito diferentes. E assim por diante.”

Essa luta distorcida pela igualdade, sob o apelido de função social do contrato, revela-se ainda mais grave quando realizada de maneira casuística pelos tribunais apenas para beneficiar o litigante tido como mais fraco, ou mais socialmente vulnerável. Como ensina Timm, não há que se confundir função social do contrato com “justiça social a ser implementada pelo estado através de políticas públicas”. Ou, como dizem Cooter e Ulen, “os juristas se concentram em processos individuais, ao passo que os economistas se concentram em estatísticas. Estatisticamente, a proteção paternalista da Sra. Williams por restrições jurídicas no mercado de crédito impõe custos elevados aos consumidores pobres como classe. (…) As pessoas pobres como classe pagarão mais pelo acesso ao crédito e comprarão menos bens de consumo do que fariam da outra forma.”

Vê-se que aqui o que resultado obtido é o contrário da pretendida igualdade, com o aumento de custos trazendo potencial alijamento do mercado dos menos favorecidos. Seguindo a lição de Sen, as tentativas de alcançar igualdade de capacidades desvinculadas de uma análise de eficiência pode conduzir a uma redução da eficiência da sociedade como um todo, o que nada mais é do que uma redução da riqueza de todos. Isso é tão verdadeiro no acesso ao crédito quanto é para o contrato de seguro, em que a condenação judicial a indenizar coberturas não contratadas, ou em que houve um mascaramento na descrição do risco, só pode conduzir a um aumento de custos para todos e a uma perda da eficiência da técnica securitária com distorções de mercado e de concorrência.

Qual é então a função social do contrato de seguro? Como maximizar o seu efeito distributivo? Ora, o contrato de seguro por sua própria natureza já é distributivo e já exerce relevantíssima função social.

Pode-se contar com pelo menos 10 pontos, divididos em três segmentos – segurança, estabilidade econômico-financeira e desenvolvimento – em que se destaca a função social do seguro.

 

Na promoção da segurança:

1. Seguradores são agentes de resposta financeira imediata (enquanto ajuda governamental, ou políticas públicas, podem demorar meses ou anos, a cobertura de risco coberto ocorre em até 30 dias);

2. A cultura do seguro mitiga o risco (seja através exigências contratuais de ajuste, seja por incentivos educacionais de comportamento).

 

Na promoção da estabilidade econômica/financeira, tem-se os seguintes:

3. Seguradores protegem o capital (através do imenso volume de recursos imobilizados em reservas, os seguradores apresentam grande resistência às crises financeiras e possuem uma capacidade muito maior do que os bancos de contribuir para o PIB em meio à recessão);

4. O seguro complementa ou supre políticas públicas (como ocorre mais visivelmente nos seguros de saúde, renda temporária, acidentes de trabalho, previdência etc);

5. Auxilia a manutenção da cadeia produtiva (mediante coberturas específicas de interrupção de fornecimento ou amplas de ressarcimentos de prejuízos);

6. Injeção de capital (ao mitigar o risco dos particulares, incentiva o investimento e reduz a necessidade de precaução e poupança).

 

Já quanto ao desenvolvimento, vêm os quatro últimos pontos:

7. Financiamento da dívida pública (ao imobilizar grande parte de suas provisões em títulos públicos, o seguro aumenta a capacidade de investimento dos governos);

8. Promoção de obras de infraestrutura (o seguro auxilia sobremaneira a viabilizar as grandes obras – papel ainda majorado pela nova lei Lei 14.133/21 – que muitos economistas defendem ser relevante para a retomada do crescimento);

9. Favorecimento de novas tecnologias (as pesquisas de última geração, por sua novidade e imprevisibilidade de resultados, demandam especial segurança financeira);

10. Facilitação de crédito (através dos seguros-prestamistas e demais ramos de seguro-garantia).

 

Diante de tal relevância, vê-se que qualquer intervenção que prejudique o funcionamento deste contrato irá afetar negativamente pelo menos algum destes 10 pontos e, por conseguinte, gerar resultados socialmente indesejáveis. Tirante eventuais abusos, a função social do contrato de seguro será alcançada pela garantia de um ambiente favorável ao seu desenvolvimento, com uma segurança jurídica estribada no respeito aos contratos e capaz de dotar de previsibilidade as decisões do Judiciário.

 

* Lúcio Roca Bragança é advogado especialista em Direito do Estado pela UFRGS e com MBA em Gestão Jurídica de Seguros e Resseguros pela ENS. É sócio do escritório Agrifoglio Vianna e parecerista na seara securitária.

 

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