Por Walter Polido*
Diante dos eventos catastróficos que têm ocorrido também no Brasil, sendo que o país era tido até há pouco tempo como uma zona protegida e não suscetível a danos da natureza, é necessário refletir sobre alguns aspectos emergentes, sem proselitismo e subterfúgios. O mercado de seguros brasileiro passou ao largo desse tipo de discussão, desde sempre, mesmo porque também acreditou que a imensa área geográfica do país era de fato “protegida”.
Salvo na questão da seca que sempre assolou o nordeste do Brasil e serviu de justificativa para a destinação de verbas governamentais ao longo de décadas, mas que não parece terem sido aplicadas de fato para a solução do problema, diferentemente de Israel por exemplo, assentado no deserto, nas demais regiões os ciclos climatológicos sempre pareceram normais ou mais estáveis e com possibilidade de gestão no tocante à agricultura, por exemplo.
Os seguros agrícolas passaram por um movimento de modernização e desenvolvimento no Brasil a partir de análises científicas realizadas em centros acadêmicos e tecnológicos, custeadas pelo Estado. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973, teve forte protagonismo e, a partir dos resultados de excelência das pesquisas realizadas, a iniciativa privada do agronegócio prosperou.
Através do mapeamento climatológico, cientificamente estabelecido, os seguros de agro puderam ser implementados com rigor tecnológico, sendo que antes eram operados de forma empírica e sempre subvencionados pelo Governo, notadamente durante o monopólio do resseguro, de longa duração.
As Seguradoras privadas faziam um “fronting”, sem retenção alguma dos riscos e das despesas e os fundos rurais administrados pelo ressegurador monopolista assumiam as responsabilidades e os respectivos valores envolvidos. Com este padrão, o Estado protagonizava a operação e a iniciativa privada sempre teve o papel de simples coadjuvante, não assumindo riscos, tampouco desenvolvendo pesquisas tecnológicas. Com a abertura do resseguro, em 2007, esse quadro mudou bastante e as Seguradoras tiveram de assumir mais riscos no referido segmento, buscando a proteção do resseguro, livremente negociado. Não à toa, elas se interessaram pela inovação tecnológica no setor e o Estado proveu, assim como já foi comentado retro. Até aqui, nenhum fato novo.
As mudanças climáticas, inquestionáveis quando analisadas sob o viés tecnológico disponível e a racionalidade, salvo na narrativa disfuncional de pessoas que “criaram” um mundo paralelo e sem conexão com a realidade, têm movimentado as pautas dos diferentes segmentos, inclusive nos mercados de seguros e resseguros. São alarmantes os cenários e os prognósticos.
A realidade é desafiadora, mesmo porque a certeza das ocorrências catastróficas é tamanha e precisa, a ponto de colocar em xeque o conceito basilar do seguro, justamente pautado na aleatoriedade do risco segurável.
Questiona-se, a partir dessa nova realidade, se é necessário mudar o conceito ou alargar o significado, de modo que o seguro possa ser aplicado de fato, preservando a sua condição de instrumento econômico eficaz, até que se encontre um substitutivo, por exemplo. Ou o setor privado se renderá de vez, deixando de oferecer garantias para os riscos climáticos, impulsionando o Estado a preencher a lacuna, assim como já faz em vários outros segmentos? Ou a iniciativa privada se associará ao Poder Público, de modo a oferecer soluções diversas e em parceria, assim como muitos países já fazem em relação ao risco de terrorismo, por exemplo.
Os pools de riscos atômicos são também lembrados quando esse tipo de discussão vem à tona. O Brasil acabou de criar um fundo de indenização para a assistência de vítimas de acidentes de trânsito (SPVAT), conforme o disposto na Lei Complementar n.º 207, de 16 de maio de 2024, sendo que muitos ainda insistem em chamar de seguro, assim como a próprio ordenamento legal, sendo que a descaracterização do tipo contratual é notória. A farta distribuição da produção dos “prêmios” arrecadados com o SPVAT, para várias entidades estatais, já denota anomalia suficiente para desconfigurar o referido modelo sob a natureza de seguro, cuja essência se pauta do pagamento de prêmio à seguradora, para que esta possa indenizar os sinistros advindos. O Estado e as entidades estatais devem ser providos por meio de dotação orçamentária e não com prêmio de seguro, de qualquer tipo.
O SPVAT, com a sua parafiscalidade implícita no tocante aos proprietários de veículos, não é um seguro, de modo algum. A iniciativa privada, neste particular, perdeu mais uma oportunidade de desenvolver o Seguro de Responsabilidade Civil Automóveis, de livre negociação pelas Seguradoras, assim como é a praxe internacional neste segmento.
Voltando aos eventos climáticos e às implicações do fenômeno nos diferentes contratos de seguros já existentes e comercializados pelo mercado de seguros nacional, convém destacar alguns pontos diferenciadores, na medida em que tem sido observada flagrante confusão na utilização dos termos.
Seguro (Fundo de Assistência às vítimas) de Eventos Climáticos
Especificamente, ainda não há no Brasil um seguro garantindo as consequências dos eventos climáticos de uma maneira geral, notadamente com a finalidade de assistir pessoas menos favorecidas e que não têm condições financeiras para contratar seguros de propriedades.
O tema começou a ser mencionado há pouco tempo, mas sem qualquer tipo de solução objetiva a respeito. Há que se ter muita cautela nas discussões pertinentes e de modo a evitar proselitismo e narrativas de ocasião, públicas e privadas, sem objetividade alguma.
Foi proposto projeto de lei com esse objetivo de criação de fundo assistencial, inclusive com a participação de todos os cidadãos que consomem energia elétrica, uma vez que a proposta se assenta na cobrança de determinada quantia na conta de luz, de modo a prover o fundo público de indenização.
O mercado de seguros nacional ainda não discutiu o tema com a profundidade requerida. Outras formas de provisão do fundo podem ser viabilizadas, assim como a destinação de percentual dos prêmios arrecadados nos seguros tradicionais, por exemplo.
Nos EUA há o National Flood Insurance Program (NFIP), criado em 1969, o qual provém de cobertura contra alagamentos aquelas propriedades elegíveis em cada município. O NFIP está disponível em todos os estados americanos. Há a possibilidade de as Seguradoras garantirem em nome delas as coberturas do referido programa, mas o NFIP assume os custos dos sinistros.
Há um limite de garantia por propriedade segurada. No âmbito privado, as Seguradoras podem oferecer a cobertura contra o risco de alagamento, através de apólices tradicionais de seguros de propriedades, com a indicação de franquias substanciais, sendo que essas apólices podem também ser aplicadas em excesso ao programa NFIP[1]. O Brasil precisa encontrar o seu próprio modelo.
Nas discussões e primeiros ensaios a respeito dos chamados microsseguros, poucos anos atrás, o mercado de seguros brasileiro não logrou êxito algum no empreendimento, se comparado à realidade de outros países. Desvirtuaram o conceito e o escopo desse modelo, reduzindo-o a algumas poucas iniciativas de seguros de baixo custo.
Em outros países, assim como na Índia, o modelo segue em marcha, mas sem a concepção de contrato de seguro e seu formalismo, diferente do que se pretendeu implantar no Brasil. Os microsseguros, na sua essência, são voltados para pessoas de baixa renda, muitas delas sem instrução alguma e, por isso mesmo, a oferta, a contratação e a prova da existência do seguro seguem ritos extremamente simplificados. Imaginar a existência de contratos rebuscados, com condições extensas, assim como ocorrem nos seguros tradicionais é impensável.
A intermediação, por sua vez, não pode prevalecer nessa área, a ponto de os custos tornarem a operação inexequível, diferentemente da realidade encontrada nos seguros tradicionais. Os microsseguros têm finalidade social extremada, sendo que as Seguradoras, na verdade, devem oferecer a sua cota-parte de contribuição para as sociedades que apresentam significativos desníveis socioeconômicos, assim como a brasileira. Imaginar lucratividade na operação é puro contrassenso e desconstrói o fundamento do referido modelo.
Com base nessas premissas orientadoras, convém destacar a necessidade de o Brasil, a sociedade e o mercado de seguros empreenderem discussões objetivas sobre o tema e de modo a buscarem a solução mais adequada à realidade do país.
As grandes cidades brasileiras, grande parte delas assentadas na faixa litorânea, apresentam toda a sorte de problemas de concentração demográfica, construções irregulares, invasão de áreas impróprias para a habitação, não atendimento dos serviços públicos essenciais como saneamento básico – água e esgoto. A discussão acerca da criação de um fundo de assistência a vítimas de eventos climáticos passa, necessariamente, por todos esses pontos.
Seguros Ambientais
Os Seguros Ambientais, contratados através de apólices específicas, apesar do nome empregado, têm o objeto de cobertura direcionado, o qual está centrado na indenização de danos ambientais causados em decorrência da atividade empresarial empreendida pelo segurado. Tais danos cobertos podem atingir terceiros identificados e também os bens naturais de propriedade difusa (ecossistemas, águas superficiais e subterrâneas, atmosfera, solo e subsolo), incluindo a limpeza dos próprios locais segurados.
No tocante aos eventos climáticos, objeto deste texto, deve ser destacado que o Seguro Ambiental pode garantir as consequências deles, na medida em que, por exemplo, propiciarem a mistura de produtos tóxicos e/ou contaminantes existentes no âmbito industrial, no local segurado, os quais vazaram, dispersaram, impregnaram o solo ou as águas, e afins. Deve ser observado, portanto, que o objeto da cobertura é direcionado ao desempenho da atividade industrial e não propriamente ao evento climático. Em situações catastróficas, inclusive, pode ser inexequível a execução da apólice pertinente, em razão da extensão e da complexidade dos danos havidos, certamente de difícil imputação individualizada ao segurado.
Seguros Paramétricos
Este modelo de seguro, ainda pouco desenvolvido no país, garante as perdas financeiras de um determinado segurado por conta de um evento climático predeterminado na apólice, assim como seca, neve, temperatura, vento, visibilidade, nebulosidade, luz solar ou chuva e todos eles com índices objetivamente conhecidos e projetados previamente.
O seguro é estabelecido, portanto, com base em dados científicos coletados e trabalhados por centro tecnológico especializado, o qual será designado na apólice. Ponto crucial nesse tipo de seguro é o período de cobertura determinado no contrato de seguro, estabelecido de comum acordo entre as partes celebrantes.
Ocorrendo variação climática nesse período e se esta repercutir em perdas financeiras quanto ao desempenho da atividade empresarial do segurado, o seguro é acionado e garante a indenização devida. As aplicações para este tipo de seguro são variadas: usinas geradoras de energia (termoelétricas, hidrelétricas, eólicas, solares); riscos agrícolas; grandes eventos; construção de obras de grande porte; outros.[2]
Então, conhecido o escopo de cobertura deste tipo especial de seguro, a garantia relativa a eventos climáticos catastróficos é direcionada exclusivamente às perdas financeiras sofridas pelo segurado da apólice.
Seguros de Propriedades
Nesta categoria de seguro, diferentes tipos podem ser destacados, assim como os Seguros de Riscos Nomeados (industrial), Riscos Operacionais (industrial), Compreensivos de Condomínios Residenciais, Comerciais e Industriais, Responsabilidade Civil, Lucros Cessantes, Agrícolas, Automóveis, Equipamentos Diversos, Riscos de Engenharia, outros.
No tocante ao risco de “eventos da natureza”, cuja aplicação é nodal em se tratando de eventos catastróficos, surge uma série de questões, dependendo dos termos e condições de cada uma das apólices contratadas. Não há um padrão único de procedimento, apesar de o mercado de seguros nacional ainda se encontrar fortemente assentado em modelos de condições contratuais elaborados de forma padronizada pelo Estado (ressegurador monopolista de 1939-2007 e depois pela Susep de 2007-2020).
O Órgão Regulador flexibilizou a liberdade de elaboração de condições contratuais, dos diferentes ramos, a partir do final de 2020, sendo que para os produtos massificados e/ou de adesão, a regulação é apenas conducente no tocante aos elementos básicos que devem constar das condições das apólices e, no que se refere aos grandes riscos, representados por contratos de seguros paritários e simétricos, a liberdade é integral. As Seguradoras não têm utilizado plenamente a prerrogativa que elas dispõem e as apólices vêm sendo renovadas nos mesmos moldes anteriores, com deficiências redacionais e estruturais, ainda não solucionadas.
Neste contexto, estruturalmente, é ainda comum no mercado de seguros nacional a adoção do modelo segmentado de coberturas, as quais são divididas entre Condições Gerais, Condições Especiais e Condições Particulares, cuja estrutura determina complexidade excessiva ao contrato de seguro, tornando-o de difícil compreensão e manuseio.
Este modelo, inclusive, permite a ocorrência de lacunas (gaps) de coberturas entre um texto e outro constante ou ausente da apólice. Diante do escopo deste texto – cobertura securitária para os eventos climáticos catastróficos – a referida estrutura pode repercutir na não garantia do risco pela apólice contratada, em prejuízo dos segurados.
Tem sido usual o emprego do conceito de cobertura isolada, ou seja, quando ela é concedida, a Seguradora a oferece de forma adicional e mediante a aplicação de “condições particulares” e prêmio separado para os riscos de “alagamento” (águas de chuva ou rompimento de adutoras/encanamentos); “inundação” (transbordamento de águas de rios); “vendaval, ciclones, tornados e afins”.
Este padrão não é utilizado em todos os mercados de seguros, notadamente nos países desenvolvidos e tecnicamente maduros, sendo que o risco de “água”, por exemplo, não sofre essa repartição excessiva que recebe no mercado de seguros brasileiro, em flagrante descompasso com a garantia esperada de um contrato de seguro de propriedades.
No tradicional Seguro de Automóvel, a indicação usual das coberturas básicas para os riscos de “colisão – incêndio – roubo”, já denota dificuldade de enquadramento do risco proveniente de água, na garantia da apólice, cujo padrão é insustentável e não pode ser mantido. Se a referida apólice não mencionar a cobertura para “danos materiais” de uma maneira genérica, muito provavelmente haverá a negativa de indenização para os danos provenientes de água. Este tipo de situação denota espécie de “cláusula surpresa”, sendo que o seu efeito devastador se torna efetivamente conhecido apenas no momento crucial do sinistro.
Determinar, numa apólice de seguro de propriedades, que o local segurado pode estar garantido contra os danos por enchente de rio (cobertura de inundação) e não por alagamento (água de chuva e/ou rompimento de adutora/encanamentos), não condiz com a boa técnica desejável para os contratos de seguros no século XXI. Não há razão alguma para este tipo de segmentação de coberturas permanecer no Brasil.
As Seguradoras que operam no país são as mesmas que comercializam apólices bem estruturadas nos países de origem delas, assim como em outros mercados nos quais elas também estão presentes. O padrão conservador e antiquado que prevaleceu durante todo o regime de monopólio do resseguro e que foi mantido pela Susep até 2020, não pode mais persistir. Os Corretores de Seguros têm a obrigação de esclarecer os seus clientes sobre esse tipo de desvantagem contratual encontrada no Brasil, exigindo das Seguradoras urgente mudança de paradigmas.
O modelo que ainda persiste é disfuncional. Elas podem e devem deixar de oferecer este tipo de estrutura contratual. No tocante especificamente aos riscos climáticos catastróficos, o cenário requer a promoção de discussão objetiva a respeito, pelo mercado de seguro nacional e de modo a criar programas especiais de coberturas, assim como já estão disponibilizados nos EUA, citado supra, provavelmente com o estabelecimento de parceria público-privada.
O tratamento desses riscos não pode permanecer como se encontra atualmente, ou seja, sem direção técnica adequada e precisa, ficando por conta de cada Seguradora privada estabelecer a política de subscrição que julga adequada e que não tem correspondido aos interesses seguráveis.
Em razão da catástrofe que acometeu o estado do Rio Grande do Sul, uma vez baixadas as águas, infelizmente a realidade do padrão contratual encontrado em vários tipos de seguros emergirá e tornará transparente a necessidade de atualização. Não há paliativos para essa urgência.
Os contratos de seguros têm de ser úteis para quem os contrata, especialmente no momento crucial do sinistro, garantindo a continuidade dos negócios, de forma célere. Fora isso, seria necessário repensar o contrato de seguro como instrumento eficaz e garantidor de fato e, dependendo da posição das Seguradoras privadas, o Estado tem o dever de facilitar a contratação de seguros no exterior e a internalização de indenizações no país, como condição extrema.
Nessa mesma senda, cabe ampliar a discussão acerca da formação de Seguradoras Cativas no país, assim como a aprovação do PLC 101/2023 e/ou eventuais Substitutivos, o qual propõe a ampliação da atuação das Cooperativas em seguros. O momento é este, sem tardança e sem contornos.
* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, advogado, técnico-especialista em seguros e resseguros, consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros, também é árbitro em seguros e resseguros, parecerista, professor universitário e escritor.
Artigo publicado pela Revista Seguro Nova Digital